sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Um poema sobre mim e Deus.

 



Deus sabe que de mim nada pode esperar

Porque sabe exatamente quem eu sou

Porque conhece minha imperfeição

Pelo tamanho de minha finitude.

ELE sabe de antemão o resultado das provações

A que me submete agora e no futuro.

Deus sabe que eu sou só fragilidade e ignorância

Por isso não me fez a sua imagem e semelhança!

 

Talvez Deus me tenha feito para o pecado,

Porque esse é o máximo de livre arbítrio que nos une:

Eu como a limitação do corpo,

ELE como a infinitude do ser.

Numa combinação de tempo e angústia

Regida pelas leis do acaso e da ponderação.

 

Deus sabe que sendo o pecado,

Eu sou sua parte vencida

E, por isso, não podemos competir.

E que, embora eu não seja um deus,

Eu sou sua imagem e semelhança,

Não porque ELE me tenha feito assim,

Mas, porque, essa é a significância do tempo para nós:

O entrelaçamento de duas existências

Que nunca se fará carne,

Por conta da transitividade do verbo que é.

 De:  Ponciano Ratel

 

 

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Dias Tormentosos em Rio dos Currais




Por volta do fim de janeiro do ano seguinte, o estimado prefeito anunciou novas obras de embelezamento da cidade. Era preciso preparar Rio dos Currais para sua grande festa anual. A tradicional festa de São João, no mês de junho. Época em que a cidade se transformava em um grande ponto turístico, pois vinha gente de toda região acompanhar as famosas vaquejadas, pegas de boi, festejos juninos animadíssimos como não se via em parte alguma do Vale do Salitre. A cidade de Rio dos Currais, embora fosse o município com menor população do país e contasse em sua geografia, excetuando-se, é claro, a grande extensão rural, com nada mais que quatro ruas dispostas no entorno da imponente igreja de São João, ao norte; da construção barroca que abrigava a prefeitura e a câmara municipal ao sul; e do hospital a leste; e da escola infantil onde estudavam os filhos dos quinhentos e oitenta e cinco habitantes, a oeste; costumava receber centenas de visitantes durante as famosas festas de junho. Gente de toda parte aportava nas franjas de Rio dos Currais no mês de junho para participar de competições como pegas de boi, corrida de morão, festas de apartação, farra do boi. Durante quinze dias, a cidade era o destino de muitos que queriam diversão, paqueras, gastar dinheiro, dançar forró, comer milho assado, cozido, pamonha, espeto de gato, mungunzá doce, salgado, carne de bode, carneiro, queijo de cabra, rapadura, caldo de cana, farinha seca com carne salgada, enfim, todo tipo de iguaria e bebidas que fariam inveja aos deuses do olimpos, com suas ambrosias. Era um tempo de bonança para Rio dos Currais. O faturamento das lojas de acessórios crescia vertiginosamente. Os pequenos comércios de comida, de objetos artesanais de barro, de couro; os hotéis improvisados, as pequenas glebas de terras transformadas em chácaras para turistas; os currais alugados, as casas de campo, tudo era negociado a preço alto, aquecendo a economia local e aborrotando os bolsos insaciáveis dos cidadãos de bens da pequena cidade, aqueles mesmos que se encarregavam da administração municipal ou da feitura das leis.

Logo, era imperioso, dizia o prefeito, vangloriando-se da grande ideia, “embrenhar esforços desmedidos para tornar Rio dos Currais a mais linda cidade de todo vale, para quando os visitantes que aqui chegam, sejam tomados de assalto pela admiração irresistível ante a beleza incomparável de nossa cidade”. Então, que começassem as obras de embelezamento ainda no mês de janeiro, pois, já havia apontado no horizonte o ano vindouro. Assim aconteceu. Desta vez era hora de reformar todas as fachadas de lojas, residências, câmara de vereadores, prefeitura, hospital, escola. Era também necessário reformar a praça central, substituindo bancos, trocando pisos, mudando a tonalidade da pintura. O secretário de obras veio a público, explicou os projetos arquitetônicos à população, especificou os quantitativos orçamentários, discorreu sobre normas de construção, segurança do trabalho, equipamentos de proteção individual e coletivos, da importância de se evitar acidentes de trabalho, da resistência dos materiais, da mecânica dos fluídos, da textura das tintas, para ao final informar aos moradores que todos os custos da empreitada seriam repassados para a conta de IPTU de cada unidade residencial, através de moderníssima modalidade de tributação denominada de Contribuição de Melhorias, imposto exacerbadamente utilizado nos países civilizados. Sobre o qual, dissera sem disfarçar a empolgação, durante o descerramento da placa de inauguração do início das obras, estava agora bastante informado por meio de Domingo Elesbão, presidente da casa legislativa, que acabara de chefiar uma missão de suma importância para o desenvolvimento de Rio dos Currais, em viagem oficial pelos estados Unidos, Europa e China.

Em meio aos aplausos entusiasmados de alguns presentes e do corpo de funcionários da prefeitura e da câmara de vereadores, ouviu-se ao fundo o primeiro reclamo de Joelson da Farmácia:
_ Esse “fiu do cabrunco” vai botar mais conta nas nossas costas, desgraçado, fio de uma ronca e fuça “miserávi”, pai d’égua.
_ Pois num é, cumpadre! – apoiou o barbeiro Alonso. – já não basta viajar o mundo todo por nossa conta, ainda vai fazer reforma da cidade para a gente pagar.
Outros esboçaram, a seus modos, tímidos protestos que foram ofuscados pela habilidade retórica de Etevaldo Elesbão, excelentíssimo senhor prefeito do munícipio de Rio dos Currais, cidade próspera à margem do Rio que nasce na Serra da Saudade. Depois disso, ninguém mais se manifestou e as obras tiveram começo, porém, não puderam ser concluídas, em virtude das contingências da vida, que a todos faz sucumbir e mudar os planos.

A cidade tinha esse nome em homenagem à imensa extensão de pasto verde que se alastrava por todo território. Por ali, ano após ano, alguns milhares de cabeça de gado vinham tangidas por aboios entoados por vaqueiros pobres, a atravessar os campos de Rio dos Currais em direção aos portos que ficavam nas cercanias do litoral. Enquanto despachantes cuidavam da burocracia para embarcar a carne para o estrangeiro, tarefa que costumava durar até dois meses para seu desembaraço, rebanhos inteiros permaneciam em currais à beira do rio que banhava o Vale do Salitre, pastando, ruminando e adubando a terra. Nesse ínterim, acontecia a grande festa de São João de Rio dos Currais, com suas exuberantes vaquejadas, barracas de comida e bebida e bandas de forró que se estendiam noite a fora, animando os casais que se arriscavam a rodopiar nos salões de dança improvisados sobre o chão batido, num arrasta-pé que enfeitiçou os americanos servindo em bases militares durante a segunda guerra mundial. Durante as festividades, a cidade era toda enfeitada com bandeirolas, palhas de coco trançadas, pessoas vestidas de roupas de cangaceiros, jaquetas, sandálias e chapéus de couro cru, celas ornamentadas para cavalos, escoras, facões e bainhas, peixeira e bicho morto crepitando nas churrasqueiras feitas com tijolos enfileirados sobre o chão poeirento da temporada seca que é o outono no Vale do Salitre.

_ Eita que a cidade “tá ficano é bunita”, cumadre.
_ “Né mermo” dona Leninha. O prefeito “butou foi pegado”, agora. A testada da frente da casa tá mais enfeitada que cruz de beira de estrada.
_ Então não é, dona das Dores. Dá é gosto votar em Etevaldo. “Ô prefeito pra gostar de tudo arrumadinho”. “É um peste mesmo, hein?”
_ E num é? Se num fosse a roubalheira da família, nossa cidade era um brinco.
_ Ah isso é verdade, viu cumadre. O tal do Domingo Elesbão, vixe maria! – exclamou dona Leninha, fazendo o sinal da cruz enquanto desaparecia casa adentro. Dona das Dores continuou a varrer o terreiro, enquanto admirava a beleza das primeiras fachadas pintadas para a festa junina.

Os meses foram se sucedendo. A data da festa se aproximava, quando por volta de fim de abril, o vereador Claudionor Matos, líder da oposição, caiu enfermo de doença rara. O quadro clínico se agravou rapidamente e o edil veio a óbito, deixando a todos perplexos. “Como pode alguém saudável morrer de uma hora para outra”, todos se perguntavam na cidade. Os familiares diziam que certa noite o camarada acordou meio febril, com forte cansaço e tosse seca. Nos dias seguintes teve fortes dores, congestão nasal, corrimento nasal, dor de garganta e diarreia, vindo a morrer no décimo sexto dia após desembarque da viagem pelo mundo em companhia dos outros vereadores. O povo, então, passou a especular que Claudionor Matos havia trazido alguma coisa ruim do estrangeiro, pois nada mais poderia explicar a morte repentina de um sujeito de compleição física de fazer inveja a qualquer atleta profissional. A desconfiança não tardou a aumentar, já que dois dias depois, chegou ao conhecimento da comunidade que Agnaldo Elesbão, assessor de comunicação da Câmara Municipal e irmão do presidente Domingo, também havia sido infectado por alguma praga trazida de fora, pois se encontrava a beira da morte no hospital da cidade. Daí a três dias morreu, levando Rio dos Currais ao pânico generalizado. As pessoas começaram a lotar a igreja de São João, pedido a Deus que perdoasse seus pecados, já que o fim do mundo se aproximava e não se podia morrer sem uma confissão. “Deus não deixe que a doença matadeira me leve agora”, diziam intimamente em suas preces e orações. 

O doutor Cícero Crispim, médico diretor do hospital do município concedeu longa entrevista, conclamando o povo da cidade a permanecer em suas casas até que tivesse notícias confiáveis sobre o que havia acontecido com seus pacientes. Ele alertava que, pela gravidade da enfermidade, a terapia reclamava internamento em Unidade de Tratamento Intensivo, com uso de respiradores mecânicos. E que os pacientes apresentavam forte resistência aos procedimentos médicos tradicionais. Já Etevaldo Elesbão, irmão do morto e prefeito da cidade, tinha outra maneira de ver as coisas ao insistir que as palavras do médico foram mal escolhidas, já que causavam certa histeria, atribuindo excessiva gravidade a casos comuns de gripe. E que, é claramente perceptível que a doença infecciosa agrava apenas a situação de pacientes cujo sistema imunológico já esteja debilitado como do irmão dele, cardíaco e diabético. E para demonstrar que sua tese era embasada pela ciência médica, havia chamado um especialista do litoral que lhe assegurava se tratar tão somente de conhecida virose gripal, sem maiores consequências que alguns dias de febre e leve dor de cabeça, acompanhados de corrimento nasal. Diante disso, convidava toda cidade para o sepultamento de estimado familiar no cemitério local. No dia seguinte, toda Rio dos Currais estava presente na despedida de Agnaldo Elesbão. Domingo e Etevaldo fizeram longos discursos. Outros vereadores ou correligionários dos chefes de poderes presentes também se aventuraram em palavrórios alongados para agradar seus aliados políticos.  O doutor Cícero Crispim, tudo condenava. Recomendava apenas aos seus concidadãos parcimônia e distanciamento social voluntário, pois estava lendo em seus compêndios sobre moléstias raras que a mais sensata e eficiente atitude a ser tomada agora era ficar em casa, a fim de evitar aglomerações como aconteceu no sepultamento do familiar do chefe do executivo, pois só assim se poderia impedir a curva exponencial de contágio. O prefeito discordava do veterano médico de Rio dos Currais. Mas, como não podia demitir um velho amigo, desengavetou um pedido de aposentadoria feito em dezembro do ano passado e dispensou, assim, os serviços do experiente cientista daquela cidade esquecida por deus e pelos homens. O doutor Cícero Crispim sumiu da cidade na mesma semana, foi direto para capital do país, em busca de informações acerca da enfermidade que desafiava seus conhecimentos médicos. Retornou alguns meses depois, sendo aclamado como herói.

Durante a ausência do doutor Crispim a infecção se alastrou pela cidade de Rio dos Currais, matando quase cem dos seus pouco mais de  quinhentos e oitenta cidadãos. Aguardava-se com esperança a chegada de turistas para a festa de junho que se avizinhava, acreditando-se que alguém pudesse trazer esclarecimento sobre a maldita doença que queria exterminar o povo honesto e cristão de Rio dos Currais. Entretanto, ninguém aparecia. Apavoradas, as pessoas se trancaram em casa depois da morte de setenta e cinco pessoas em três semanas. A cidade virou um deserto. Ninguém circulava pelas ruas. O mato começou a romper o asfalto, fazendo brotar erva daninha por toda parte. Apagando quaisquer sinais da beleza prometida pelo prefeito para as fachadas das casas em volta da praça central. Às nove e quinze da noite de um dia de domingo, a polícia foi chamada pelos vizinhos e encontrou os corpos de toda família do ceboleiro Adroaldo. O local era uma casa grande da cidade, propriedade de uma das famílias mais abastadas de Rio dos Currais. Eram ao todo seis pessoas mortas. 

O pânico tomou de conta da cidade de uma vez por todas. Pessoas morriam, o prefeito procurava outras explicações, relutando em reconhecer a gravidade da situação, alegando que as pessoas não deveriam ficar em casa, pois morreriam de fome, causa mais provável e mais certa do que aquela “gripezinha”. Algumas pessoas deram ouvidos ao prefeito e retomaram a vida normalmente. Muitas morreram. O prefeito mantinha-se firme nas suas convicções pueris, sem embasamento científico nenhum. As pessoas que argumentavam em favor do isolamento total das famílias eram ridicularizadas pelos prepostos do chefe maior do município, tinham seus nomes expostos ao ridículo, eram achincalhadas, menosprezadas, vilipendiadas pelos asseclas de Etevaldo Elesbão. Os partidários do prefeito organizaram passeatas, carretas pela cidade. Pessoas passavam de porta em porta xingando, ordenando que as pessoas a viessem para a rua, saíssem imediatamente de casa, a esquecessem a ideia estúpida de quarentena e retomasse a normalidade da vida. Portas eram chutadas com força, janelas esmurradas com fúria. A turba enlouquecida vociferava insultos contra os confinados, chamando-os de covardes, cretinos, filhos da puta.  Ouviam-se gritos de horror de crianças assustadas dentro das casas. As pessoas permaneciam trancafiadas em suas residências, tomadas pelo medo da doença viral mortífera, aterrorizadas pelas atitudes truculentas do prefeito e seus aliados, ameaçadas pela fome estacionada no batente, uma vez que o prefeito impedia que se ajudassem os confinados, confiscando mercadorias, gêneros de primeira necessidade, cortando o fornecimento de água, ameaçado interromper o serviço e iluminação pública e doméstica. O prefeito não cedia, queria a “volta da normalidade a qualquer custo”, dizia aos berros do púlpito da praça central. “Etevaldo está louco, pensavam as pessoas confinadas em suas casas paupérrimas, passando fome e doentes”. Ele foi infectado pela “Doença Matadeira”. “Ou então, está possuído pelo tinhoso, só pode ser isso”.

A cidade já contava mais de uma centena de mortos, mas Etevaldo Elesbão não arredava pé de suas ideias malucas, nem mesmo quando Domingo Elesbão tombou enfermo na cama à beira da morte. A essa altura, de todas as pessoas que haviam estado na missão internacional pela Europa, China e Estados Unidos, apenas o presidente da casa legislativa ainda estava vivo. Onze tinham morrido um após o outro, com os mesmos sintomas de Claudionor Matos: febre, forte cansaço, tosse seca, fortes dores, congestão nasal, corrimento nasal, dor de garganta e diarreia.  O especialista trazido de outra cidade pelo prefeito de Rio dos Currais assumiu o tratamento de Domingo Elesbão, iria experimentar uma droga nova chamada Hidroxidina, cuja posologia, afirmava com convicção de pesquisador incontestável, estava sendo amplamente utilizada para curar a infecção viral que havia tomado o país de assalto. Utilizou-se da dosagem que quis para arrefecer o mal de Domingo Elesbão, porém, sem sucesso, pois o quadro clínico do paciente só piorava. Acabou por reconhecer que não dispunha de maiores informações acerca da substância medicamentosa que havia prescrito para o chefe do legislativo e, por isso, não sabia, no momento, explicar a deterioração do quadro clínico do paciente. Todavia, manteria o interno à custa de respiradores mecânicos, pois ouvira de amigos médicos que era a única possibilidade de prolongar a vida do enfermo. Etevaldo Elesbão ouvia tudo com tamanha impaciência. Para quem não conhecia o ímpeto desvairado dele, poderia até crer que sua teimosia começava a ruir, mas não, não ruía, tornava-o mais empedernido. Nada do que havia presenciado, seja com Agnaldo, seja com Domingo, irmãos que a morte levara ou ameaçava levar, era capaz de demovê-lo da loucura que havia se apossado dele. Nem parecia aquele prefeito amado pelo povo que  havia lhe concedido quatro mandados na provincial, mas próspera cidade de Rio dos Currais, conhecida por tantos nas redondezas pela grandeza da festa junina, das vaquejadas, das comidas típicas que atraiam tantos turistas. No auge do que se assemelhava a insanidade, Etevaldo Elesbão não conseguia atentar para a gravidade do que se passava em sua cidade. Ele nutria a falsa esperança de que a prosperidade econômica trazida pelos turistas durante os festejos era, no momento, atravancada pela covardia de seu povo, escondido como cães assustados por conta de um “resfriadinho” incapaz de acometer de morte pessoas fortes e atléticas como ele. E que apenas os velhos e fracos deveria permanecer em quarentena, pois somente esses morreriam. Era preciso abrir as portas da cidade, chamar de volta à normalidade os cidadãos, os visitantes, terminar a pintura das fachadas das casas, organizar as vaquejadas, as festas juninas, montar as barracas, vender, vender, ganhar dinheiro, movimentar a economia, lotar os bares, os salões de festas, porque Rio dos Currais não pode parar nunca, nunca, nunca. A Economia não pode parar!

Não durou nem uma semana pra Domingo Elesbão vir a óbito. Etevaldo convidou toda a cidade para o enterro, que seria com todas as pompas possíveis. O especialista trazido de outras bandas desaconselhou a medida, recomendando que o prefeito mudasse de ideia e aconselhasse os concidadãos a ficar em casa, em isolamento por pelo menos doze semanas. O prefeito não deu ouvido. Insistiu no convite ao povo para as honras fúnebres ao inestimável Domingo Elesbão, o mais longevo presidente da Câmara Municipal de Vereadores de Rio dos Currais. O povo não atendeu ao chamado. No enterro, apenas Etevaldo e sua família se fizeram presente na despedida do grande legislador de nossa cidadela. Etevaldo Elesbão se enfureceu mais ainda, mas a essa altura já estava só e doente. A enfermidade o havia alcançado, como se quisesse quebrar sua espinha dorsal, fazendo-o dobrar-se aos imperativos da vida: o tempo, a doença, a morte. O especialista de outra cidade não suportou os arroubos do prefeito e foi embora para nunca mais voltar. Dizem as más línguas que ele morrera vítima da doença que pretendia erradicar, uma vez que até hoje a Hidroxidina por ele receitada não demonstrou nenhuma viabilidade no tratamento do mal que o doutor Cícero Crispim nos informou chamar COVID-19, doença infecciosa causada pelo tal Coronavírus, descoberto recentemente no mundo, que já tinha matado meio mundo nos quatros cantos da terra. Após a partida do especialista trazido por Etevaldo Elesbão para convencer as pessoas que a doença mortal que plainava no ar de Rio dos Currais não era tão grave quanto afirmava o renomado médico da cidade, a equipe médica que reassumiu o hospital encontrou sobre a mesa do forasteiro, numa bíblia por ele usada, passagens destacadas do capítulo do Apocalipse.

Na terceira semana de junho, o doutor Cícero Crispim retornou a Rio dos Currais com uma carga grandiosa de remédios e equipamentos médicos, destinados ao tratamento da infecção causada pelo COVID – 19. Chegando ao hospital foi informado sobre o quadro clínico gravíssimo do prefeito Etevaldo Elesbão. Não mediu esforços para salvá-lo. Fez tudo que estava ao seu alcance, e recomendava a Ciência. Não obteve sucesso. “Etevaldo Elesbão, prefeito de Rio dos Currais, faleceu hoje às nove horas da manhã, vítima de complicações infecciosas causadas pela patologia denominada de COVID-19. Em virtude de quarentena decretada pelo novo prefeito, o enterro do excelentíssimo senhor prefeito será reservado apenas aos familiares. Agradecemos a compreensão de todo”. Assim, foi a nota de falecimento, objetiva e rápida. O doutor Cícero Crispim foi reconduzido ao seu antigo posto de diretor do hospital do município, acumulando as funções de secretário de saúde, já que o titular da pasta tinha morrido também. O novo prefeito era pessoa de mais sensatez que Etevaldo. Não estava na linha sucessória até a morte de Domingo Elesbão. Como era seu vice, assumiu primeiramente a presidência da Câmara de Vereadores até ser convocado para enfrentar a gestão municipal, depois da morte do prefeito. O vice foi um dos doze mortos que estavam na grande missão estrangeira. Antenor Medeiros era um vereador inexpressivo que virou vice-presidente da câmara legislativa porque era considerado um sujeito ponderado. Estava no segundo mandato. Não era doutor como Cícero Crispim, pelo menos não da medicina, mas o era do Direito, um doutor das leis, como se diz por aí. Entretanto, a sua maior qualidade era mesmo a ponderação. Não discutiu quando o doutor Crispim o aconselhou a ir a público interceder pela necessidade de isolamento, baixando de imediato um decreto instituindo a quarentena total em Rio dos Currais.

_ Se o senhor, que é médico, diz que essa é a melhor medida que temos agora para frear o contágio desta epidemia, não serei eu que vou me opor.
_ Ainda bem que podemos contar com a compreensão do senhor, prefeito. Muito obrigado, disse o médico.

E embora não tivesse essa intenção, o decreto do doutor Crispim recrudesceu o pânico na pequena Rio dos Currais. As pessoas mantiveram sua determinação de não sair de casa. Corriam notícias de mortes o tempo todo. E o mau cheiro denunciava que no interior de muitas residências corpos de famílias inteiras apodreciam sem sepultamento cristão. O médico Cícero Crispim tomara a dianteira da questão epidêmica e, com o total apoio de Antenor Medeiros, montou um gabinete de crise, destinado a criar um plano de contingência para salvar as pessoas e a cidade daquela horrível praga que assolava a esperança de uma gente festiva, alegre e solidária. Na primeira semana de trabalho conjunto da prefeitura, com a equipe de doutor Crispim e a meia dúzia de soldados que restaram para proteger a cidade, foram logo reorganizadas as unidades intensivas do hospital municipal para atendimento de quantos precisassem dos respiradores mecânicos, trazidos das cidades litorâneas, onde bem sucedidas campanhas de combate ao COVID – 19 tinham sido levadas a cabo por renomados especialistas de diversas áreas: infectologia, epidemiologia, virologia, macumbaria, pajelança, cirurgia espiritual, quiromancia, feitiçaria e etc, etc, etc. Foram chamados a participar outros dois médicos da cidade, o farmacêutico, o curandeiro, a rezadeira, padres, pastores, adivinhos, enfim, todos aqueles que de algum modo lidavam com a arte de curar enfermos do corpo ou da alma. O doutor Crispim, embora fosse extremamente devotado à Ciência, chegando até mesmo a ser reconhecido como ateu pelos moradores de Rio dos Currais, não se opôs à ação daqueles que antes alcunharia de semeadores de crendices estapafúrdias, extravagantes. Naquela luta, disse a amigos próximos, quem travará a batalha contra o cavaleiro da morte que campeia o imaginário daquela gente simplória de intelecto e autoestima, senão os que trabalham para confortar as almas atribuladas com devoção e misticismo? Nisto parecia está com a razão. Nas residências da cidade eras comuns imagens de santos, orixás, Deus, Jesus, Maria, ornamentando as paredes, denunciando a força da fé que movia aquela gente espezinhada pela labuta diária dura com a terra, pelo sofrimento dos anos que escavam sucos de dor e decepção em suas faces. O médico Crispim não se mostrou insensível a tudo isso. Pelo contrário, achou por bem estimular a solidariedade entre sua gente. Exortando-a para que se apegasse a fé, às orações, às rezas, às simpatias, ou seja, a tudo quanto pudesse trazer ao indivíduo um pouco de paz espiritual nessa hora de angústia e pesar, de horror e morte em Rio dos Currais. E assim, foi reconquistando a confiança do povo em sua autoridade de médico, de homem público, de pai, de avô, de mortal. Em pouco mais de três semanas, era uma liderança benquista pelo novo prefeito e toda vereança. Pelo povo, era louvado como uma espécie de anjo. Toda cidade enxergava na ação destemida e cirúrgica de Cícero Crispim a instrumentalização da vontade de Deus, que, embora fustigasse com força aquela gente pecadora, ainda não tinha condenado a iniquidade desse povo a ponto de destruir Rio dos Currais como fizera com Sodoma e Gomorra.

O segundo decreto que o doutor Crispim induziu o novo prefeito a editar foi para banir do anais médicos de Rio dos Currais a droga Hidroxidina, que mais matava que curava. O remédio teve proibida a produção, a comercialização, a prescrição. “Nunca mais nos aproveitaremos da condição vulnerável das pessoas que padecem da mais cruel enfermidade que se espalhou pela terra para fazer lobby de porcarias medicamentosas que mais matam que salvam”, disse o doutor Cícero Crispim na sua coletiva diária para explicar ao povo os avanços no combate à enfermidade que combalia a cidade. O novo prefeito obedeceu. O terceiro decretou editado era uma convocação ao voluntariado. A nota conclamava as pessoas a se apresentarem para ajudar aqueles que mais necessitavam. Havia muita gente padecendo de fome e outras doenças, além da infecção do COVID – 19. Era preciso levar alimento, remédio, conforto para quem estava sofrendo. E, por isso, o novo prefeito vinha chamar quem se dispusesse a colaborar com a Força Tarefa que seria montada para vasculhar casas há muito tempo fechadas, para resgatar pessoas enfermas que foram abandonadas, para sepultar os corpos de pessoas que apodreciam no interior de suas casas, para apresentar as pessoas doentes as curas disponíveis que o doutor Cícero Crispim havia trazido de longe. Terapias excelentes desenvolvidas por europeus, norte- americanos e chineses, por cientistas dos lugares onde tinha origem a praga assassina. A nota fora afixada nas portas das casas, nas paredes, passadas por debaixo das frestas de portas e janelas para o interior das residências, coladas na entrada da igreja de São João, do cemitério, do hospital, nos bancos da praça central, nos murais da prefeitura e da Câmara Legislativa, enfim, em toda parte onde pudesse ser vista pelas pessoas que bisbilhotavam as ruas através das frestas das janelas cerradas de suas moradias. Durante dois dias nenhuma resposta. Não se via uma pessoa sequer na rua. Nenhuma porta ou janela se abrira. A podridão que exalava dos cadáveres aumentava, era insuportável. O novo prefeito e doutor Crispim já discutiam o uso da força policial, se necessário fosse, quando adveio o primeiro sinal positivo.

A primeira pessoa a atender o chamado de doutor Crispim foi dona Lucinda Elesbão, viúva de Etevaldo. Debandou de sua chácara, a oito quilômetros do centro da cidade com dois caminhãozinhos atulhados de mantimentos, remédios, cobertores, álcool em gel. Apresentou-se ao gabinete de crise acompanhada de quatro de seus empregados que, segundo deixaram claro, estavam ali por vontade própria, e não por ordem de dona Lucinda. O novo prefeito não conseguiu disfarçar a alegria, pois, sabia o tamanho enorme daquela adesão. Dona Lucinda Elesbão disse tão somente que para salvar a cidade era imprescindível salvar primeiro as pessoas, e para isso estava ali: ajudar a salvar as pessoas. A casa grande do falecido ceboleiro Adroaldo foi escolhida para ser o quartel do voluntariado. Lá dona Lucinda reuniu a pequena equipe de voluntários, cujo número aumentara após as mulheres do novo prefeito e dos cinco vereadores sobreviventes se somarem aos esforços de guerra liderados pela ex-primeira-dama, que depois de chorar as mortes dos cunhados e do marido, ex-prefeito de Rio dos Currais tomou a firme decisão de que era preciso salvar as pessoas para salvar a cidade de seus ancestrais, de seus filhos que ficaram sob os cuidados de sua irmã mais velha na chácara, em confinamento total. No dia seguinte, começou sua missão indo de porta em porta, anunciando-se paras pessoas e comunicando que deixava encostado à porta da casa uma cesta básica com remédios, comida e cobertores. Pedia também que, caso houvesse pessoas doentes no interior da residência, permitisse que as equipes do doutor Crispim pudessem entrar para retirá-las, a fim de que fossem tratadas no hospital municipal, hoje bem instrumentalizado para cuidar dos enfermos. E que, no caso de haver também mortos, pudessem ter um sepultamento cristão, como mandava a bíblia deixada por Deus, nosso senhor, através de seu filho Jesus, nosso salvador. Nos primeiros dois dias, as cestas permaneceram intocadas. 

As pessoas, aterrorizadas pela infecção que matara mais de duzentas pessoas na cidade, não se atrevia a abrir sequer uma janela, imagine a porta, que certamente permitiria que a doença invadisse sua casa. No terceiro e quarto dias, também nada acontecera. Nos subsequentes foi obrigado substituir as cestas por novas, já que alguns produtos começavam a perder sua validade, tornando-se imprestável para o consumo. Porém, no sétimo dia, percebeu-se que todas as cestas haviam sido recolhidas pelos moradores enclausurados. O plano começava a dar certo. Entretanto, o cheiro fétido, insuportável de gente morta conclamava uma medida profilática urgente. Era forçoso arrombar portas e retirar os cadáveres para o devido sepultamento. A equipe sugeriu a medida coercitiva, dura, penosa, porém inevitável. Doutor Crispim e o novo prefeito não puderam oferecer resistência. O plano de invasão foi esboçado. Todavia, antes de posto em prática, dona Lucinda apresentou às autoridades sanitárias o plano pensado por Juliano Vaqueiro, capataz antigo e homem de confiança do finado Etevaldo Elesbão, que consistia em deixar às portas das casas, assim como se fazia com as cestas de mantimentos e remédios, redes destinadas aos moradores para que enrolassem seus doentes e mortos e os deixassem na calçada para serem resgatados pelas equipes de voluntariados. O intento teve aprovação unânime e foi logo posto em prática. No dia posterior, haviam sido deixados do lado de fora cinco mortos e mais de sete adoentados. A equipe de doutor Crispim recolhera os doentes ao hospital municipal, enquanto os mortos foram levados ao cemitério para registro e sepultamento. Os corpos eram embalados nas redes e colocados cuidadosamente pelos familiares nas calcadas frias. As equipes de socorro os resgatavam e os levavam para o hospital ou para o necrotério para notificação e sepultamento. Duas semanas mais tarde, todos os cadáveres tinham sido entregues às equipes médicas, registrados e devidamente sepultados no cemitério da cidade. Os doentes, internados no hospital do município, seguiam em lenta, porém, esperada recuperação. 

As mortes cessaram. Os casos novos de infecção já não eram mais tão graves. Aos poucos, pessoas eram vista com janelas abertas, seguindo a recomendação de doutor Crispim sobre a importância de fazer circular novos ares pelo interior das moradias.  Certa manha, dona Lucinda, quando entregava de porta em porta a cesta de comida, teve a grata surpresa de ser recebida em uma das casas por um senhor de setenta e seis anos, que se desfez em agradecimentos por ela lhe ter salvado a vida, uma vez que só não morreu de fome graças à comida deixada em sua porta. Ele tinha sido o primeiro a se aventurar abrindo a porta, enfrentando o medo da infecção para recolher o alimento de que precisava. O senhor disse, por fim, que rezaria pela felicidade da primeira-dama enquanto tivesse vida. Dona Lucinda Elesbão, quatro vezes primeira-dama de Rio dos Currais, promotoras das mais badaladas festas da cidade, proprietária e rainha eterna do maior parque de vaquejada da região do Vale do Salitre, chorou copiosamente quando recebeu daquele simplório senhor o gesto de gratidão que suplantou toda frivolidade que tinha sido sua vida até então. Só não se desfez em abraços e outros gestos de carinho ante a atitude daquele sincero vovô porque o contato humano ainda não era recomendado pelo doutor Cícero Crispim, a imprescindível autoridade sanitária da menor cidade do país. A partir daquele fatídico dia, dona Lucinda Elesbão devotaria toda a sua vida a ajudar o próximo, aos necessitados, aos enfermos, vindo anos depois a ser a mais elogiada e solidária prefeita de Rio dos Currais. A Associação de Caridade criada por dona Lucinda despertou uma legião de voluntários na região do Vale do salitre. Houve quem dissesse após seu segundo mandato de prefeita devotada à luta contra a erradicação da pobreza, que dona Lucinda Elesbão só não ganhou o Prêmio Nobel da Paz porque depois de Rio dos Currais ter sido massacrada com a infecção vinda do estrangeiro, ninguém ficou sabendo que existiu na menor cidade do país a corporificação da generosidade, da caridade, da voluntariedade a ajudar o próximo que sofre, enfim, a verdadeira emancipação dos sentimentos que fazem despertar no indivíduo seu melhor humanismo: a solidariedade.

No final de julho, a crise de saúde tinha sido debelada graças à comunhão de esforços da gente simples de Rio dos Currais. As pessoas não tinham mais medo de sair à rua. Crianças brincavam nos quintais como faziam antes da doença maldita que matou quase trezentas pessoas da cidade: primos, avós, avôs, tios, irmãos, sobrinhos, todo munda havia perdido um ente querido. Os mortos ficariam para sempre na memória dos seus parentes e amigos. Mas sol persistia a iluminar aquela cidadezinha que aprendeu lições importantíssimas sobre esperança, morte, loucura e solidariedade durante os dias de sua terrível provação. Personagens distintos seriam lembrados anos a fio. Alguns, como dona Lucinda, o novo prefeito e o doutor Cícero Crispim reclamariam para si sempre uma carga grandiosa de gestos de gratidão associados às lembranças que despertavam. As velhas ruas, antes denominadas pelos pontos cardeais, agora ostentavam os nomes desses inesquecíveis filhos ilustres de Rio dos Currais. A quarta rua da cidade, não porque não existissem nomes dignos de serem homenageados, mas por uma questão de preservar a memória daqueles dias de luta, foi rebatizada de Rua da Aurora, para simbolizar o renascimento da fé, da irmandade, da solidariedade no seio daquele povo temente a Deus. Essa era também a rua onde se situava o hospital municipal, onde muitos foram salvos da “doença matadeira”.
Os próximos meses foram de reconstrução da cidade e das vidas. Aos poucos tudo foi sendo reconduzido à rotina de trabalho para fazer de Rio dos Currais a cidade adorada pelos turistas que retornariam nas próximas festas de junho. 

No janeiro seguinte, os habitantes da pequena cidade foram unânimes em concordar com o novo prefeito de que era necessário iniciar os preparativos para a grande festa que pretendiam realizar naquele ano. Entretanto, havia um problema que se mostrava incontornável naquele momento. A epidemia devastara as finanças do município, do comércio, das pessoas, o que limitava a ambição de festejos que devolvessem a boa reputação de que gozava Rio dos Currais antes do vírus da morte. Foi quando o senhor de nome Emerenciano pediu a palavra. Ele tinha setenta e seis anos de idade e era aquele tempo a pessoa mais velha da cidade.  Emerenciano Feitosa era seu nome completo. O senhor que se apresentava para assumir a ordem do discurso, com sua voz frágil, pausada, porém, firme ao propor a melhor saída para o povo de sua sofrida cidade, era o mesmo que manifestou sua gratidão à dona Lucinda, quando a recebeu em sua casa, durante a ação solidária que esta liderou para salvar o povo de Rio dos Currais da exterminação. No conselho, que ora emprestava as autoridades ali presentes, dizia:

_ Senhores e senhoras! - começou encadeando as palavras de forma pausada e com muita objetividade - sei que não detenho autoridade para impor nada a esta cidade, e nem desejo fazer qualquer imposição. Sei também o que passamos recentemente. Carrego, como todos vocês, a dor da perda, a angústia da impotência diante dos imperativos da vida. Neste momento, no auge da idade que ostento, pergunto-me por que fui poupado quando jovens e crianças sucumbiram. Mas isso não é o que importa agora. A resposta a essa minha indagação, apenas Deus me poderá dar. E creio que isso não tardará acontecer, se merecedor eu for dessa dádiva. No entanto, o objetivo de minha fala é sugerir aos senhores que este ano façamos uma festa para nós, diferente do que tem sido até aqui. Ano após ano, Rio dos Currais prepara festejos para pessoas de outros lugares. Peço que entendam que eu não estou condenando esta atitude, já que os turistas contribuem fortemente para o desenvolvimento econômico deste pequeno município, além do mais, é salutar a interação entre os povos. Não condeno o modo como tem sido organizada a festa de nosso santo padroeiro. Apenas ressalto que haverá novas oportunidades para essas grandes festas, dignas da reputação de Rio dos Currais no Vale do Salitre. E conclamo que neste ano - apenas nesse ano, se for o entendimento geral - façamos a festa aos moldes antigos. Resgatando esquecidas tradições que ajudaram a nos tornar o que somos. Façamos a festa de São João para nós mesmos, como um ato de confraternização, com fogueiras acessas na frente das casas, com vizinhos interagindo, enfim, com nosso povo festejando esse desejado renascimento, após sobreviver o mal que se lançou sobre nós. Uma festa para nós sobreviventes homenagearem aqueles que não puderam estar conosco agora. Era o que tinha a dizer.

Um momento de silêncio sucedeu às palavras de Emerenciano Feitosa. Houve uma moção silenciosa de adesão à proposta. Ninguém se opusera a que a festa naquele ano retomasse o aspecto antigo de festejos familiares, onde fogueiras eram acessas em frente às casas, vizinhos se confraternizavam, havia danças de quadrilhas, milho assado diretamente na fogueira, cozido em panelas de barro, pamonha, broa, bolo, polenta, angu, mungunzá doce, mungunzá de sal, carne assada, pessoas vestidas de cangaceiro, camisas quadriculadas, jaquetas de couro cru, chapéus, damas e cavaleiros rodopiando ao som de sanfona, triângulo, zabumba, tiro de bacamarte, rojões, jogos de azar, de caipira, tudo que faz dos festejos juninos nas mais remotas cidadezinhas desse país imenso se transformar num momento de fraternidade, de alegria, de esperança, de interação, de solidariedade entre pessoas simples, cuja marcha diária não se resume a comércio, à Economia, a Mercado, a contar moedas e cadáveres que se avolumam pela opressão do vil metal, pela decisão de líderes insanos como Etevaldo Elesbão, que conduzia seu povo a morte, à destruição. Não. Essa era a festa de um povo que dança e canta para a vida, que na desgraça acolhe seus semelhantes, que se ajudam mutuamente, ainda que seja preciso dividir o pouco que tenha, que na alegria compartilha com seus iguais, que sonha com dias melhores, apesar da frieza e perversidade de seus representantes nas assembleias dos nobres. Enfim, aquela foi uma festa para comemorar a aurora de Rio dos Currais. Para celebrar o heroísmo de pessoas como o novo prefeito, Antenor Medeiros, dona Lucinda, os Voluntários do Casarão, como ficou conhecida a equipe de bravos cidadãos liderada por dona Lucinda, a magnitude e honradez do doutor Cícero Crispim, que desafiou os limites de sua sabedoria e saúde para conduzir a luta contra a morte que pairava sobre Rio dos Currais.  A festa não durou quinze dias como antes da “doença matadeira”, mas os dois dias pelos quais se estendeu foram dias de reencontro daquela gente simples, crente, trabalhadora, orgulhosa da bravura com que suportou os dias difíceis de doença e morte.

Passados dois anos da grande campanha contra a morte trazida pela doença mortífera que a Ciência alcunhou de COVID – 19, a gente simples de Rio dos Currais, a menor cidade do país, com pouco mais de duzentos e trinta habitantes, retomou sua rotina de trabalho, devoção, solidariedade; e de festejos juninos de fazer inveja aos maiores carnavais do planeta. Antenor Medeiros foi reeleito prefeito. Dona Lucinda entrou para apolítica e agora cuida da feitura das leis na Câmara Municipal. O inexcedível doutor Cícero Crispim, agora aposentado de verdade, emprega seu tempo a estudar e escrever livros sobre os procedimentos utilizados no tratamento de doenças respiratórias graves e a ministrar palestras em faculdades de medicina no litoral. A “Doença Matadeira”, como ficou conhecido, em Rio dos Currais, o vírus mortal COVID – 19, que infectou mais de um milhão de pessoas no mundo, levando a morte de centenas de milhares de seres humanos, em mais de duzentos países, finalmente foi controlada após a comissão de estudiosos de todas as nações, reunida pela Organização Mundial de Saúde, desenvolver eficiente vacina, hoje recomendada para todos os indivíduos da terra. “O mal finalmente foi vencido e o tinhoso aprisionado novamente”, disse o novo padre na primeira missa que celebrou na igreja de São João, na pequena cidade de Rio dos Currais. “Deus seja louvado”, continuou. “Para sempre seja louvado”, responderam todos, em uníssono, a ecoar por todo Vale do Salitre.

Ponciano Ratel.                                                

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

O maldito poeta anarquista


“Tudo muda e nada muda”. Com licença, meus caros, pois esta é a poesia de Lawrence Ferlinghetti, 99. Lançado em 1958, na livraria City Lights, em São Francisco, a obra Um Parque de Diversões, a qual esses versos fazem parte, é tida como um de seus livros mais cultuados do expoente da geração beat. Na poesia ferlinghettiana é comum abordagens de temas com cunho políticos e sociais. Durante a década de 1980, publicou o romance Amor e revolução, que narra a história de um banqueiro revolucionário que vivia em conformidade com o espírito burguês.
Apesar de começar esta matéria citando um poema que faz parte de Um Parque de Diversões, não quero propriamente discorrer sobre isso. Após mergulhar de cabeça na bibliografia dos beats Allen Ginsberg, William Burroughs e Jack Kerouac, inclusive provando algumas experiências tal como os mestres fizeram outrora, umas publicáveis, outras nem tanto, consigo parar um momento e refletir: a literatura beat é sim coisa de primeira. E o livro Amor nos Tempos de Fúria, lançado no Brasil em 2012, segue nessa mesma toada e, com isso, fisga o leitor da primeira à última linha.
Paris, 1968. Os estudantes da universidade parisiense Sorbonne tomaram as ruas para protestar, discursar e pichar palavras de ordem contra o general Charles De Gaulle, reacionário que combatera na Segunda Guerra. A eles uniram-se trabalhadores, artistas e músicos, sendo o estopim para uma das maiores revoltas da história. Com esse pano de fundo, Ferlinghetti idealiza o encontro entre Annie, pintora estadunidense, passional e idealista, e Julien, um cético banqueiro português que se diz anarquista de coração, assim como no famigerado livro Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa, publicado em 1922.
O escritor demonstra todo seu talento para a prosa ao narrar a complicada história entre Annie e Julien. Entrelaçando um enredo íntimo de seus personagens com conflitos sociais que aconteceram naquele período, Ferlinghetti faz também uma espécie de síntese das questões políticas, sociais e artísticas que marcaram toda uma geração. Em Montparnasse, no La Couple, em Paris, no fim da noite, o leitor logo nas primeiras páginas é apresentado à protagonista. Narrado em terceira pessoa, em fluxo de consciência, o beat coloca-nos no centro do caos que estava instaurado na cidade da luz.
TÔNICA
Críticas aos sistemas totalitários, como ao fascismo do ex-socialista Benito Mussolini, que vigorara na Itália durante a década de 1930, e ao nazismo do artista plástico frustrado Adolf Hitler, que provocara a Segunda Guerra Mundial, são a tônica de vários textos que Ferlinghetti escreveu ao longo das últimas seis décadas. Lê-lo é indispensável nesses tempos em que o autoritarismo vem ganhando força na sociedade brasileira com candidaturas caricatas que semeiam discursos de ódio e fazem uma ode de extremo mau gosto à Ditadura Militar.
Em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, no dia 7 de setembro de 2016, Ferlinghetti disse que o anarquismo – ideologia política que teve Mikhail Bakunin como principal expoente – sempre foi um ideal, e não uma ideologia. “Ele nasceu no século XIX, e nessa época o mundo não tinha um terço das pessoas que tem hoje. O anarquismo era possível quando não havia populações grandes”, explicou, na ocasião. “Mas hoje, a não ser que você tenha alguma forma de governo, as pessoas vão acabar matando umas às outras. De qualquer forma, é isso que começa a acontecer”, disse.
Sobre a autobiografia One Stream of Consciousness que está escrevendo, aos 99 anos, Ferlinghetti contou que o ideal seria chamar a obra de “romance-memória”. “A parte autobiográfica é desde quando sou menino e segue até tudo o que tenho a dizer como adulto. No fim das contas, sou uma criança que ficou velha e está quase cega. Esse é o fim. Não é ficção, é vida real. Não gosto do termo ficção, você diria que Cem anos de Solidão é uma ficção?”, completa. O poeta disse ainda que “o poeta por definição é um inimigo do Estado”.
Na entrevista, Ferlinghetti falou que o escritor William Burroughs, autor do clássico Almoço Nu, de 1959, “era como tanto outros doidões” na época em que os beats frequentavam a livraria City Lights. “Achei que expressava uma mentalidade de doidão, cheia de morte e ódio. Burroughs era “el hombre invisible”, veio à livraria mais de uma vez para fazer leituras, mas você via que ele não estava lá. Era como tanto outros velhos doidões, que estão presentes fisicamente, mas não estão presentes de fato. Eu nunca entrei na mesma onda que ele”, comentou à Folha.
VIDA
Lawrence Ferlinghetti nasceu em Yonkers, no Estado de Nova Iorque, em 1919. Filho de italianos, seu pai morreu antes dele nascer, e sua mãe foi internada em função de problemas nervosos quando o poeta ainda era pequeno. Foi criado por uma tia materna e passou cinco anos de sua infância na França. Ao retornar para os Estados Unidos, ingressou em várias escolas até entrar na University of North Carolina, onde estudara Jornalismo. Publicou suas primeiras histórias na revista cultural Carolina Magazine.
Durante o verão de 1941, Ferlinghetti morou com amigos em uma pequena ilha no Maine. A experiência o aproximou do mar, que se tornou um dos temas recorrentes em sua obra. Em seguida, entrou para a marinha norte-americana. Serviu na Segunda Guerra Mundial, participando da invasão da Normandia, na França. Depois trabalhara por um breve período na revista Time, antes de voltar para a Columbia University, de Nova Iorque. Nela, conseguiu a titulação de mestre em literatura inglesa. Doutorou-se pela Sorbonne, em 1950, com menção honrosa.
Retornou para o EUA, em 1951, onde instalou-se em São Francisco. Passou a dar aulas de francês, traduzir, pintar e fazer crítica de arte em jornais. As primeiras traduções que fez foram publicadas na revista cultural City Lights, por Peter D. Martin, que se tornaria sua sócia na mítica livraria de mesmo nome. Um ano depois da saída de Martin, fundou a editora City Lights e lançou sua primeiro livro, Pictures of the Gone World, primeiro volume da Pocket Poets Series.

Poema de Lawrence Ferlinghetti

Tudo muda e nada muda.
Séculos findam
e tudo continua
como se nada findasse.
Como nuvens estáticas a meio-vôo
Como dirigíveis presos contra o vento.
E a urbana febre das feras do cotidiano
ainda domina as ruas. Mas ouço cantarem
ainda agora as vozes dos poetas
mescladas ao grito das prostitutas
na velha Manhantan
ou na Paris de Baudelaire,
chamados de pássaros ecoam
nas ruelas da história
renomeados.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Poemas de Boris Pasternak

VENTO

Eu acabei e tu estás viva. 
E o vento, queixando-se e chorando, 
abana a casa e as árvores à volta. 
Não cada pinheiro isoladamente, 

mas todas as árvores juntas 
de todos os infinitos distantes, 
como navios ao sabor das correntes 
nas baías brilhantes ancorados. 

E isso não por audácia 
ou por frenesia insensata, 
mas para na melancolia encontrar as palavras 
para a tua canção de embalar. 

É assim que começam. Pelos dois anos 
separam-se da ama para o enigma das melodias, 
gorjeiam, assobiam, - e as palavras 
surgem por volta dos três anos. 

É assim que começam a entender. 
E no ruído pior que uma turbina 
parece que a mãe não é mãe, 
que eles não são eles e a casa é outra. 

Que fazer da terrível beleza 
que se senta no banco lilás? 
Realmente quer roubar crianças? 
E assim nascem as suspeitas. 

Assim amadurecem os receios. Aceitar 
a estrela alta inatingível, 
quando se é Fausto, quando se é visionário? 
E assim começam os ciganos. 

É assim que se abrem, voando alto 
sobre as cercas, onde estão as casas ausentes, 
dos mares súbitos como suspiros. 
É assim que nascerão os jambos. 

Assim nas noites de Verão, de barriga 
na areia, e a súplica: Seja! 
Ameaçam a aurora com a tua pupila. 
E até se atrevem a discutir com o sol. 



SILÊNCIO

Ainda não é nascida.
É só canção e poesia,
E está em plena harmonia
Com tudo o que é vida.

O seio da onda arfa em paz,
Mas como um louco brilha o dia
E a espuma pálido-lilás
Jaz no azul-névoa da bacia.

Que em meus lábios pairasse
A quietude original
Como uma nota de cristal
Pura desde que nasce!

Volve … poesia e a canção,
Sê só espuma, Afrodite,
Coração, desdenha o coração
Que com vida coabite!


quinta-feira, 4 de abril de 2019

CLARICE LISPECTOR

O que me tranquiliza 
é que tudo o que existe, 
existe com uma precisão absoluta. 
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete 
não transborda nem uma fração de milímetro 
além do tamanho de uma cabeça de alfinete. 
Tudo o que existe é de uma grande exatidão. 
Pena é que a maior parte do que existe 
com essa exatidão 
nos é tecnicamente invisível. 
O bom é que a verdade chega a nós 
como um sentido secreto das coisas. 
Nós terminamos adivinhando, confusos, 
a perfeição.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Edgar Allan Poe: O Corvo


Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso 
Batestes, não fui logo, prestemente, 
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso 
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais."

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais!"

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais".

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranquilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: "Nunca mais."

“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: "Nunca mais".

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

(Tradução de Machado de Assis)