Por volta do
fim de janeiro do ano seguinte, o estimado prefeito anunciou novas obras de
embelezamento da cidade. Era preciso preparar Rio dos Currais para sua grande
festa anual. A tradicional festa de São João, no mês de junho. Época em que a
cidade se transformava em um grande ponto turístico, pois vinha gente de toda
região acompanhar as famosas vaquejadas, pegas de boi, festejos juninos animadíssimos
como não se via em parte alguma do Vale do Salitre. A cidade de Rio dos
Currais, embora fosse o município com menor população do país e contasse em sua
geografia, excetuando-se, é claro, a grande extensão rural, com nada mais que
quatro ruas dispostas no entorno da imponente igreja de São João, ao norte; da
construção barroca que abrigava a prefeitura e a câmara municipal ao sul; e do
hospital a leste; e da escola infantil onde estudavam os filhos dos quinhentos
e oitenta e cinco habitantes, a oeste; costumava receber centenas de visitantes
durante as famosas festas de junho. Gente de toda parte aportava nas franjas de
Rio dos Currais no mês de junho para participar de competições como pegas de
boi, corrida de morão, festas de apartação, farra do boi. Durante quinze dias,
a cidade era o destino de muitos que queriam diversão, paqueras, gastar
dinheiro, dançar forró, comer milho assado, cozido, pamonha, espeto de gato,
mungunzá doce, salgado, carne de bode, carneiro, queijo de cabra, rapadura,
caldo de cana, farinha seca com carne salgada, enfim, todo tipo de iguaria e
bebidas que fariam inveja aos deuses do olimpos, com suas ambrosias. Era um
tempo de bonança para Rio dos Currais. O faturamento das lojas de acessórios
crescia vertiginosamente. Os pequenos comércios de comida, de objetos
artesanais de barro, de couro; os hotéis improvisados, as pequenas glebas de
terras transformadas em chácaras para turistas; os currais alugados, as casas
de campo, tudo era negociado a preço alto, aquecendo a economia local e
aborrotando os bolsos insaciáveis dos cidadãos de bens da pequena cidade,
aqueles mesmos que se encarregavam da administração municipal ou da feitura das
leis.
Logo, era
imperioso, dizia o prefeito, vangloriando-se da grande ideia, “embrenhar
esforços desmedidos para tornar Rio dos Currais a mais linda cidade de todo vale,
para quando os visitantes que aqui chegam, sejam tomados de assalto pela
admiração irresistível ante a beleza incomparável de nossa cidade”. Então, que
começassem as obras de embelezamento ainda no mês de janeiro, pois, já havia apontado
no horizonte o ano vindouro. Assim aconteceu. Desta vez era hora de reformar
todas as fachadas de lojas, residências, câmara de vereadores, prefeitura,
hospital, escola. Era também necessário reformar a praça central, substituindo
bancos, trocando pisos, mudando a tonalidade da pintura. O secretário de obras
veio a público, explicou os projetos arquitetônicos à população, especificou os
quantitativos orçamentários, discorreu sobre normas de construção, segurança do
trabalho, equipamentos de proteção individual e coletivos, da importância de se
evitar acidentes de trabalho, da resistência dos materiais, da mecânica dos
fluídos, da textura das tintas, para ao final informar aos moradores que todos
os custos da empreitada seriam repassados para a conta de IPTU de cada unidade
residencial, através de moderníssima modalidade de tributação denominada de Contribuição
de Melhorias, imposto exacerbadamente utilizado nos países civilizados. Sobre o
qual, dissera sem disfarçar a empolgação, durante o descerramento da placa de
inauguração do início das obras, estava agora bastante informado por meio de
Domingo Elesbão, presidente da casa legislativa, que acabara de chefiar uma
missão de suma importância para o desenvolvimento de Rio dos Currais, em viagem
oficial pelos estados Unidos, Europa e China.
Em meio aos
aplausos entusiasmados de alguns presentes e do corpo de funcionários da
prefeitura e da câmara de vereadores, ouviu-se ao fundo o primeiro reclamo de
Joelson da Farmácia:
_ Esse “fiu do
cabrunco” vai botar mais conta nas nossas costas, desgraçado, fio de uma ronca
e fuça “miserávi”, pai d’égua.
_ Pois num é,
cumpadre! – apoiou o barbeiro Alonso. – já não basta viajar o mundo todo por
nossa conta, ainda vai fazer reforma da cidade para a gente pagar.
Outros
esboçaram, a seus modos, tímidos protestos que foram ofuscados pela habilidade
retórica de Etevaldo Elesbão, excelentíssimo senhor prefeito do munícipio de
Rio dos Currais, cidade próspera à margem do Rio que nasce na Serra da Saudade.
Depois disso, ninguém mais se manifestou e as obras tiveram começo, porém, não
puderam ser concluídas, em virtude das contingências da vida, que a todos faz
sucumbir e mudar os planos.
A cidade tinha
esse nome em homenagem à imensa extensão de pasto verde que se alastrava por
todo território. Por ali, ano após ano, alguns milhares de cabeça de gado
vinham tangidas por aboios entoados por vaqueiros pobres, a atravessar os
campos de Rio dos Currais em direção aos portos que ficavam nas cercanias do
litoral. Enquanto despachantes cuidavam da burocracia para embarcar a carne
para o estrangeiro, tarefa que costumava durar até dois meses para seu
desembaraço, rebanhos inteiros permaneciam em currais à beira do rio que
banhava o Vale do Salitre, pastando, ruminando e adubando a terra. Nesse
ínterim, acontecia a grande festa de São João de Rio dos Currais, com suas
exuberantes vaquejadas, barracas de comida e bebida e bandas de forró que se
estendiam noite a fora, animando os casais que se arriscavam a rodopiar nos
salões de dança improvisados sobre o chão batido, num arrasta-pé que enfeitiçou
os americanos servindo em bases militares durante a segunda guerra mundial.
Durante as festividades, a cidade era toda enfeitada com bandeirolas, palhas de
coco trançadas, pessoas vestidas de roupas de cangaceiros, jaquetas, sandálias
e chapéus de couro cru, celas ornamentadas para cavalos, escoras, facões e
bainhas, peixeira e bicho morto crepitando nas churrasqueiras feitas com
tijolos enfileirados sobre o chão poeirento da temporada seca que é o outono no
Vale do Salitre.
_ Eita que a
cidade “tá ficano é bunita”, cumadre.
_ “Né mermo”
dona Leninha. O prefeito “butou foi pegado”, agora. A testada da frente da casa
tá mais enfeitada que cruz de beira de estrada.
_ Então não é,
dona das Dores. Dá é gosto votar em Etevaldo. “Ô prefeito pra gostar de tudo
arrumadinho”. “É um peste mesmo, hein?”
_ E num é? Se
num fosse a roubalheira da família, nossa cidade era um brinco.
_ Ah isso é
verdade, viu cumadre. O tal do Domingo Elesbão, vixe maria! – exclamou dona
Leninha, fazendo o sinal da cruz enquanto desaparecia casa adentro. Dona das
Dores continuou a varrer o terreiro, enquanto admirava a beleza das primeiras
fachadas pintadas para a festa junina.
Os meses foram
se sucedendo. A data da festa se aproximava, quando por volta de fim de abril,
o vereador Claudionor Matos, líder da oposição, caiu enfermo de doença rara. O
quadro clínico se agravou rapidamente e o edil veio a óbito, deixando a todos
perplexos. “Como pode alguém saudável morrer de uma hora para outra”, todos se perguntavam
na cidade. Os familiares diziam que certa noite o camarada acordou meio febril,
com forte cansaço e tosse seca. Nos dias seguintes teve fortes dores, congestão
nasal, corrimento nasal, dor de garganta e diarreia, vindo a morrer no décimo
sexto dia após desembarque da viagem pelo mundo em companhia dos outros
vereadores. O povo, então, passou a especular que Claudionor Matos havia
trazido alguma coisa ruim do estrangeiro, pois nada mais poderia explicar a
morte repentina de um sujeito de compleição física de fazer inveja a qualquer
atleta profissional. A desconfiança não tardou a aumentar, já que dois dias
depois, chegou ao conhecimento da comunidade que Agnaldo Elesbão, assessor de
comunicação da Câmara Municipal e irmão do presidente Domingo, também havia
sido infectado por alguma praga trazida de fora, pois se encontrava a beira da
morte no hospital da cidade. Daí a três dias morreu, levando Rio dos Currais ao
pânico generalizado. As pessoas começaram a lotar a igreja de São João, pedido
a Deus que perdoasse seus pecados, já que o fim do mundo se aproximava e não se
podia morrer sem uma confissão. “Deus não deixe que a doença matadeira me leve
agora”, diziam intimamente em suas preces e orações.
O doutor Cícero Crispim,
médico diretor do hospital do município concedeu longa entrevista, conclamando
o povo da cidade a permanecer em suas casas até que tivesse notícias confiáveis
sobre o que havia acontecido com seus pacientes. Ele alertava que, pela
gravidade da enfermidade, a terapia reclamava internamento em Unidade de Tratamento
Intensivo, com uso de respiradores mecânicos. E que os pacientes apresentavam forte
resistência aos procedimentos médicos tradicionais. Já Etevaldo Elesbão, irmão
do morto e prefeito da cidade, tinha outra maneira de ver as coisas ao insistir
que as palavras do médico foram mal escolhidas, já que causavam certa histeria,
atribuindo excessiva gravidade a casos comuns de gripe. E que, é claramente
perceptível que a doença infecciosa agrava apenas a situação de pacientes cujo
sistema imunológico já esteja debilitado como do irmão dele, cardíaco e
diabético. E para demonstrar que sua tese era embasada pela ciência médica,
havia chamado um especialista do litoral que lhe assegurava se tratar tão
somente de conhecida virose gripal, sem maiores consequências que alguns dias
de febre e leve dor de cabeça, acompanhados de corrimento nasal. Diante disso,
convidava toda cidade para o sepultamento de estimado familiar no cemitério
local. No dia seguinte, toda Rio dos Currais estava presente na despedida de
Agnaldo Elesbão. Domingo e Etevaldo fizeram longos discursos. Outros vereadores
ou correligionários dos chefes de poderes presentes também se aventuraram em
palavrórios alongados para agradar seus aliados políticos. O doutor Cícero Crispim, tudo condenava.
Recomendava apenas aos seus concidadãos parcimônia e distanciamento social
voluntário, pois estava lendo em seus compêndios sobre moléstias raras que a
mais sensata e eficiente atitude a ser tomada agora era ficar em casa, a fim de
evitar aglomerações como aconteceu no sepultamento do familiar do chefe do
executivo, pois só assim se poderia impedir a curva exponencial de contágio. O
prefeito discordava do veterano médico de Rio dos Currais. Mas, como não podia
demitir um velho amigo, desengavetou um pedido de aposentadoria feito em
dezembro do ano passado e dispensou, assim, os serviços do experiente cientista
daquela cidade esquecida por deus e pelos homens. O doutor Cícero Crispim sumiu
da cidade na mesma semana, foi direto para capital do país, em busca de
informações acerca da enfermidade que desafiava seus conhecimentos médicos.
Retornou alguns meses depois, sendo aclamado como herói.
Durante a
ausência do doutor Crispim a infecção se alastrou pela cidade de Rio dos
Currais, matando quase cem dos seus pouco mais de quinhentos e oitenta cidadãos. Aguardava-se
com esperança a chegada de turistas para a festa de junho que se avizinhava,
acreditando-se que alguém pudesse trazer esclarecimento sobre a maldita doença
que queria exterminar o povo honesto e cristão de Rio dos Currais. Entretanto,
ninguém aparecia. Apavoradas, as pessoas se trancaram em casa depois da morte
de setenta e cinco pessoas em três semanas. A cidade virou um deserto. Ninguém
circulava pelas ruas. O mato começou a romper o asfalto, fazendo brotar erva
daninha por toda parte. Apagando quaisquer sinais da beleza prometida pelo
prefeito para as fachadas das casas em volta da praça central. Às nove e quinze
da noite de um dia de domingo, a polícia foi chamada pelos vizinhos e encontrou
os corpos de toda família do ceboleiro Adroaldo. O local era uma casa grande da
cidade, propriedade de uma das famílias mais abastadas de Rio dos Currais. Eram
ao todo seis pessoas mortas.
O pânico tomou de conta da cidade de uma vez por
todas. Pessoas morriam, o prefeito procurava outras explicações, relutando em
reconhecer a gravidade da situação, alegando que as pessoas não deveriam ficar
em casa, pois morreriam de fome, causa mais provável e mais certa do que aquela
“gripezinha”. Algumas pessoas deram ouvidos ao prefeito e retomaram a vida
normalmente. Muitas morreram. O prefeito mantinha-se firme nas suas convicções
pueris, sem embasamento científico nenhum. As pessoas que argumentavam em favor
do isolamento total das famílias eram ridicularizadas pelos prepostos do chefe
maior do município, tinham seus nomes expostos ao ridículo, eram achincalhadas,
menosprezadas, vilipendiadas pelos asseclas de Etevaldo Elesbão. Os partidários
do prefeito organizaram passeatas, carretas pela cidade. Pessoas passavam de
porta em porta xingando, ordenando que as pessoas a viessem para a rua, saíssem
imediatamente de casa, a esquecessem a ideia estúpida de quarentena e retomasse
a normalidade da vida. Portas eram chutadas com força, janelas esmurradas com
fúria. A turba enlouquecida vociferava insultos contra os confinados,
chamando-os de covardes, cretinos, filhos da puta. Ouviam-se gritos de horror de crianças
assustadas dentro das casas. As pessoas permaneciam trancafiadas em suas
residências, tomadas pelo medo da doença viral mortífera, aterrorizadas pelas
atitudes truculentas do prefeito e seus aliados, ameaçadas pela fome
estacionada no batente, uma vez que o prefeito impedia que se ajudassem os
confinados, confiscando mercadorias, gêneros de primeira necessidade, cortando
o fornecimento de água, ameaçado interromper o serviço e iluminação pública e
doméstica. O prefeito não cedia, queria a “volta da normalidade a qualquer
custo”, dizia aos berros do púlpito da praça central. “Etevaldo está louco,
pensavam as pessoas confinadas em suas casas paupérrimas, passando fome e
doentes”. Ele foi infectado pela “Doença Matadeira”. “Ou então, está possuído
pelo tinhoso, só pode ser isso”.
A cidade já
contava mais de uma centena de mortos, mas Etevaldo Elesbão não arredava pé de
suas ideias malucas, nem mesmo quando Domingo Elesbão tombou enfermo na cama à
beira da morte. A essa altura, de todas as pessoas que haviam estado na missão
internacional pela Europa, China e Estados Unidos, apenas o presidente da casa
legislativa ainda estava vivo. Onze tinham morrido um após o outro, com os
mesmos sintomas de Claudionor Matos: febre, forte cansaço, tosse seca, fortes dores,
congestão nasal, corrimento nasal, dor de garganta e diarreia. O especialista trazido de outra cidade pelo
prefeito de Rio dos Currais assumiu o tratamento de Domingo Elesbão, iria
experimentar uma droga nova chamada Hidroxidina, cuja posologia, afirmava com
convicção de pesquisador incontestável, estava sendo amplamente utilizada para
curar a infecção viral que havia tomado o país de assalto. Utilizou-se da
dosagem que quis para arrefecer o mal de Domingo Elesbão, porém, sem sucesso,
pois o quadro clínico do paciente só piorava. Acabou por reconhecer que não
dispunha de maiores informações acerca da substância medicamentosa que havia
prescrito para o chefe do legislativo e, por isso, não sabia, no momento,
explicar a deterioração do quadro clínico do paciente. Todavia, manteria o
interno à custa de respiradores mecânicos, pois ouvira de amigos médicos que
era a única possibilidade de prolongar a vida do enfermo. Etevaldo Elesbão
ouvia tudo com tamanha impaciência. Para quem não conhecia o ímpeto desvairado
dele, poderia até crer que sua teimosia começava a ruir, mas não, não ruía,
tornava-o mais empedernido. Nada do que havia presenciado, seja com Agnaldo,
seja com Domingo, irmãos que a morte levara ou ameaçava levar, era capaz de
demovê-lo da loucura que havia se apossado dele. Nem parecia aquele prefeito amado
pelo povo que havia lhe concedido quatro
mandados na provincial, mas próspera cidade de Rio dos Currais, conhecida por
tantos nas redondezas pela grandeza da festa junina, das vaquejadas, das
comidas típicas que atraiam tantos turistas. No auge do que se assemelhava a
insanidade, Etevaldo Elesbão não conseguia atentar para a gravidade do que se
passava em sua cidade. Ele nutria a falsa esperança de que a prosperidade
econômica trazida pelos turistas durante os festejos era, no momento,
atravancada pela covardia de seu povo, escondido como cães assustados por conta
de um “resfriadinho” incapaz de acometer de morte pessoas fortes e atléticas
como ele. E que apenas os velhos e fracos deveria permanecer em quarentena,
pois somente esses morreriam. Era preciso abrir as portas da cidade, chamar de
volta à normalidade os cidadãos, os visitantes, terminar a pintura das fachadas
das casas, organizar as vaquejadas, as festas juninas, montar as barracas,
vender, vender, ganhar dinheiro, movimentar a economia, lotar os bares, os
salões de festas, porque Rio dos Currais não pode parar nunca, nunca, nunca. A
Economia não pode parar!
Não durou nem
uma semana pra Domingo Elesbão vir a óbito. Etevaldo convidou toda a cidade
para o enterro, que seria com todas as pompas possíveis. O especialista trazido
de outras bandas desaconselhou a medida, recomendando que o prefeito mudasse de
ideia e aconselhasse os concidadãos a ficar em casa, em isolamento por pelo
menos doze semanas. O prefeito não deu ouvido. Insistiu no convite ao povo para
as honras fúnebres ao inestimável Domingo Elesbão, o mais longevo presidente da
Câmara Municipal de Vereadores de Rio dos Currais. O povo não atendeu ao
chamado. No enterro, apenas Etevaldo e sua família se fizeram presente na
despedida do grande legislador de nossa cidadela. Etevaldo Elesbão se enfureceu
mais ainda, mas a essa altura já estava só e doente. A enfermidade o havia
alcançado, como se quisesse quebrar sua espinha dorsal, fazendo-o dobrar-se aos
imperativos da vida: o tempo, a doença, a morte. O especialista de outra cidade
não suportou os arroubos do prefeito e foi embora para nunca mais voltar. Dizem
as más línguas que ele morrera vítima da doença que pretendia erradicar, uma
vez que até hoje a Hidroxidina por ele receitada não demonstrou nenhuma
viabilidade no tratamento do mal que o doutor Cícero Crispim nos informou
chamar COVID-19, doença infecciosa causada pelo tal Coronavírus, descoberto
recentemente no mundo, que já tinha matado meio mundo nos quatros cantos da
terra. Após a partida do especialista trazido por Etevaldo Elesbão para
convencer as pessoas que a doença mortal que plainava no ar de Rio dos Currais
não era tão grave quanto afirmava o renomado médico da cidade, a equipe médica
que reassumiu o hospital encontrou sobre a mesa do forasteiro, numa bíblia por
ele usada, passagens destacadas do capítulo do Apocalipse.
Na terceira
semana de junho, o doutor Cícero Crispim retornou a Rio dos Currais com uma
carga grandiosa de remédios e equipamentos médicos, destinados ao tratamento da
infecção causada pelo COVID – 19. Chegando ao hospital foi informado sobre o
quadro clínico gravíssimo do prefeito Etevaldo Elesbão. Não mediu esforços para
salvá-lo. Fez tudo que estava ao seu alcance, e recomendava a Ciência. Não
obteve sucesso. “Etevaldo Elesbão, prefeito de Rio dos Currais, faleceu hoje às
nove horas da manhã, vítima de complicações infecciosas causadas pela patologia
denominada de COVID-19. Em virtude de quarentena decretada pelo novo prefeito,
o enterro do excelentíssimo senhor prefeito será reservado apenas aos
familiares. Agradecemos a compreensão de todo”. Assim, foi a nota de
falecimento, objetiva e rápida. O doutor Cícero Crispim foi reconduzido ao seu
antigo posto de diretor do hospital do município, acumulando as funções de
secretário de saúde, já que o titular da pasta tinha morrido também. O novo
prefeito era pessoa de mais sensatez que Etevaldo. Não estava na linha
sucessória até a morte de Domingo Elesbão. Como era seu vice, assumiu primeiramente
a presidência da Câmara de Vereadores até ser convocado para enfrentar a gestão
municipal, depois da morte do prefeito. O vice foi um dos doze mortos que
estavam na grande missão estrangeira. Antenor Medeiros era um vereador
inexpressivo que virou vice-presidente da câmara legislativa porque era
considerado um sujeito ponderado. Estava no segundo mandato. Não era doutor
como Cícero Crispim, pelo menos não da medicina, mas o era do Direito, um
doutor das leis, como se diz por aí. Entretanto, a sua maior qualidade era mesmo
a ponderação. Não discutiu quando o doutor Crispim o aconselhou a ir a público
interceder pela necessidade de isolamento, baixando de imediato um decreto
instituindo a quarentena total em Rio dos Currais.
_ Se o senhor,
que é médico, diz que essa é a melhor medida que temos agora para frear o
contágio desta epidemia, não serei eu que vou me opor.
_ Ainda bem
que podemos contar com a compreensão do senhor, prefeito. Muito obrigado, disse
o médico.
E embora não
tivesse essa intenção, o decreto do doutor Crispim recrudesceu o pânico na
pequena Rio dos Currais. As pessoas mantiveram sua determinação de não sair de
casa. Corriam notícias de mortes o tempo todo. E o mau cheiro denunciava que no
interior de muitas residências corpos de famílias inteiras apodreciam sem
sepultamento cristão. O médico Cícero Crispim tomara a dianteira da questão
epidêmica e, com o total apoio de Antenor Medeiros, montou um gabinete de
crise, destinado a criar um plano de contingência para salvar as pessoas e a
cidade daquela horrível praga que assolava a esperança de uma gente festiva,
alegre e solidária. Na primeira semana de trabalho conjunto da prefeitura, com a
equipe de doutor Crispim e a meia dúzia de soldados que restaram para proteger a
cidade, foram logo reorganizadas as unidades intensivas do hospital municipal
para atendimento de quantos precisassem dos respiradores mecânicos, trazidos
das cidades litorâneas, onde bem sucedidas campanhas de combate ao COVID – 19
tinham sido levadas a cabo por renomados especialistas de diversas áreas:
infectologia, epidemiologia, virologia, macumbaria, pajelança, cirurgia
espiritual, quiromancia, feitiçaria e etc, etc, etc. Foram chamados a
participar outros dois médicos da cidade, o farmacêutico, o curandeiro, a
rezadeira, padres, pastores, adivinhos, enfim, todos aqueles que de algum modo
lidavam com a arte de curar enfermos do corpo ou da alma. O doutor Crispim,
embora fosse extremamente devotado à Ciência, chegando até mesmo a ser
reconhecido como ateu pelos moradores de Rio dos Currais, não se opôs à ação
daqueles que antes alcunharia de semeadores de crendices estapafúrdias,
extravagantes. Naquela luta, disse a amigos próximos, quem travará a batalha
contra o cavaleiro da morte que campeia o imaginário daquela gente simplória de
intelecto e autoestima, senão os que trabalham para confortar as almas
atribuladas com devoção e misticismo? Nisto parecia está com a razão. Nas
residências da cidade eras comuns imagens de santos, orixás, Deus, Jesus, Maria,
ornamentando as paredes, denunciando a força da fé que movia aquela gente
espezinhada pela labuta diária dura com a terra, pelo sofrimento dos anos que
escavam sucos de dor e decepção em suas faces. O médico Crispim não se mostrou
insensível a tudo isso. Pelo contrário, achou por bem estimular a solidariedade
entre sua gente. Exortando-a para que se apegasse a fé, às orações, às rezas, às
simpatias, ou seja, a tudo quanto pudesse trazer ao indivíduo um pouco de paz
espiritual nessa hora de angústia e pesar, de horror e morte em Rio dos Currais.
E assim, foi reconquistando a confiança do povo em sua autoridade de médico, de
homem público, de pai, de avô, de mortal. Em pouco mais de três semanas, era
uma liderança benquista pelo novo prefeito e toda vereança. Pelo povo, era
louvado como uma espécie de anjo. Toda cidade enxergava na ação destemida e
cirúrgica de Cícero Crispim a instrumentalização da vontade de Deus, que,
embora fustigasse com força aquela gente pecadora, ainda não tinha condenado a
iniquidade desse povo a ponto de destruir Rio dos Currais como fizera com
Sodoma e Gomorra.
O segundo
decreto que o doutor Crispim induziu o novo prefeito a editar foi para banir do
anais médicos de Rio dos Currais a droga Hidroxidina, que mais matava que
curava. O remédio teve proibida a produção, a comercialização, a prescrição. “Nunca
mais nos aproveitaremos da condição vulnerável das pessoas que padecem da mais
cruel enfermidade que se espalhou pela terra para fazer lobby de porcarias
medicamentosas que mais matam que salvam”, disse o doutor Cícero Crispim na sua
coletiva diária para explicar ao povo os avanços no combate à enfermidade que
combalia a cidade. O novo prefeito obedeceu. O terceiro decretou editado era
uma convocação ao voluntariado. A nota conclamava as pessoas a se apresentarem
para ajudar aqueles que mais necessitavam. Havia muita gente padecendo de fome
e outras doenças, além da infecção do COVID – 19. Era preciso levar alimento,
remédio, conforto para quem estava sofrendo. E, por isso, o novo prefeito vinha
chamar quem se dispusesse a colaborar com a Força Tarefa que seria montada para
vasculhar casas há muito tempo fechadas, para resgatar pessoas enfermas que
foram abandonadas, para sepultar os corpos de pessoas que apodreciam no
interior de suas casas, para apresentar as pessoas doentes as curas disponíveis
que o doutor Cícero Crispim havia trazido de longe. Terapias excelentes
desenvolvidas por europeus, norte- americanos e chineses, por cientistas dos lugares
onde tinha origem a praga assassina. A nota fora afixada nas portas das casas,
nas paredes, passadas por debaixo das frestas de portas e janelas para o
interior das residências, coladas na entrada da igreja de São João, do
cemitério, do hospital, nos bancos da praça central, nos murais da prefeitura e
da Câmara Legislativa, enfim, em toda parte onde pudesse ser vista pelas
pessoas que bisbilhotavam as ruas através das frestas das janelas cerradas de
suas moradias. Durante dois dias nenhuma resposta. Não se via uma pessoa sequer
na rua. Nenhuma porta ou janela se abrira. A podridão que exalava dos cadáveres
aumentava, era insuportável. O novo prefeito e doutor Crispim já discutiam o
uso da força policial, se necessário fosse, quando adveio o primeiro sinal
positivo.
A primeira
pessoa a atender o chamado de doutor Crispim foi dona Lucinda Elesbão, viúva de
Etevaldo. Debandou de sua chácara, a oito quilômetros do centro da cidade com
dois caminhãozinhos atulhados de mantimentos, remédios, cobertores, álcool em
gel. Apresentou-se ao gabinete de crise acompanhada de quatro de seus
empregados que, segundo deixaram claro, estavam ali por vontade própria, e não
por ordem de dona Lucinda. O novo prefeito não conseguiu disfarçar a alegria,
pois, sabia o tamanho enorme daquela adesão. Dona Lucinda Elesbão disse tão
somente que para salvar a cidade era imprescindível salvar primeiro as pessoas,
e para isso estava ali: ajudar a salvar as pessoas. A casa grande do falecido
ceboleiro Adroaldo foi escolhida para ser o quartel do voluntariado. Lá dona
Lucinda reuniu a pequena equipe de voluntários, cujo número aumentara após as
mulheres do novo prefeito e dos cinco vereadores sobreviventes se somarem aos
esforços de guerra liderados pela ex-primeira-dama, que depois de chorar as
mortes dos cunhados e do marido, ex-prefeito de Rio dos Currais tomou a firme
decisão de que era preciso salvar as pessoas para salvar a cidade de seus
ancestrais, de seus filhos que ficaram sob os cuidados de sua irmã mais velha
na chácara, em confinamento total. No dia seguinte, começou sua missão indo de
porta em porta, anunciando-se paras pessoas e comunicando que deixava encostado
à porta da casa uma cesta básica com remédios, comida e cobertores. Pedia
também que, caso houvesse pessoas doentes no interior da residência, permitisse
que as equipes do doutor Crispim pudessem entrar para retirá-las, a fim de que
fossem tratadas no hospital municipal, hoje bem instrumentalizado para cuidar
dos enfermos. E que, no caso de haver também mortos, pudessem ter um
sepultamento cristão, como mandava a bíblia deixada por Deus, nosso senhor,
através de seu filho Jesus, nosso salvador. Nos primeiros dois dias, as cestas
permaneceram intocadas.
As pessoas, aterrorizadas pela infecção que matara mais
de duzentas pessoas na cidade, não se atrevia a abrir sequer uma janela, imagine
a porta, que certamente permitiria que a doença invadisse sua casa. No terceiro
e quarto dias, também nada acontecera. Nos subsequentes foi obrigado substituir
as cestas por novas, já que alguns produtos começavam a perder sua validade,
tornando-se imprestável para o consumo. Porém, no sétimo dia, percebeu-se que
todas as cestas haviam sido recolhidas pelos moradores enclausurados. O plano
começava a dar certo. Entretanto, o cheiro fétido, insuportável de gente morta
conclamava uma medida profilática urgente. Era forçoso arrombar portas e
retirar os cadáveres para o devido sepultamento. A equipe sugeriu a medida
coercitiva, dura, penosa, porém inevitável. Doutor Crispim e o novo prefeito
não puderam oferecer resistência. O plano de invasão foi esboçado. Todavia,
antes de posto em prática, dona Lucinda apresentou às autoridades sanitárias o
plano pensado por Juliano Vaqueiro, capataz antigo e homem de confiança do
finado Etevaldo Elesbão, que consistia em deixar às portas das casas, assim
como se fazia com as cestas de mantimentos e remédios, redes destinadas aos
moradores para que enrolassem seus doentes e mortos e os deixassem na calçada
para serem resgatados pelas equipes de voluntariados. O intento teve aprovação
unânime e foi logo posto em prática. No dia posterior, haviam sido deixados do
lado de fora cinco mortos e mais de sete adoentados. A equipe de doutor Crispim
recolhera os doentes ao hospital municipal, enquanto os mortos foram levados ao
cemitério para registro e sepultamento. Os corpos eram embalados nas redes e
colocados cuidadosamente pelos familiares nas calcadas frias. As equipes de
socorro os resgatavam e os levavam para o hospital ou para o necrotério para
notificação e sepultamento. Duas semanas mais tarde, todos os cadáveres tinham
sido entregues às equipes médicas, registrados e devidamente sepultados no
cemitério da cidade. Os doentes, internados no hospital do município, seguiam
em lenta, porém, esperada recuperação.
As mortes cessaram. Os casos novos de
infecção já não eram mais tão graves. Aos poucos, pessoas eram vista com
janelas abertas, seguindo a recomendação de doutor Crispim sobre a importância
de fazer circular novos ares pelo interior das moradias. Certa manha, dona Lucinda, quando entregava
de porta em porta a cesta de comida, teve a grata surpresa de ser recebida em
uma das casas por um senhor de setenta e seis anos, que se desfez em
agradecimentos por ela lhe ter salvado a vida, uma vez que só não morreu de
fome graças à comida deixada em sua porta. Ele tinha sido o primeiro a se
aventurar abrindo a porta, enfrentando o medo da infecção para recolher o
alimento de que precisava. O senhor disse, por fim, que rezaria pela felicidade
da primeira-dama enquanto tivesse vida. Dona Lucinda Elesbão, quatro vezes primeira-dama
de Rio dos Currais, promotoras das mais badaladas festas da cidade,
proprietária e rainha eterna do maior parque de vaquejada da região do Vale do
Salitre, chorou copiosamente quando recebeu daquele simplório senhor o gesto de
gratidão que suplantou toda frivolidade que tinha sido sua vida até então. Só
não se desfez em abraços e outros gestos de carinho ante a atitude daquele
sincero vovô porque o contato humano ainda não era recomendado pelo doutor
Cícero Crispim, a imprescindível autoridade sanitária da menor cidade do país.
A partir daquele fatídico dia, dona Lucinda Elesbão devotaria toda a sua vida a
ajudar o próximo, aos necessitados, aos enfermos, vindo anos depois a ser a
mais elogiada e solidária prefeita de Rio dos Currais. A Associação de Caridade
criada por dona Lucinda despertou uma legião de voluntários na região do Vale
do salitre. Houve quem dissesse após seu segundo mandato de prefeita devotada à
luta contra a erradicação da pobreza, que dona Lucinda Elesbão só não ganhou o
Prêmio Nobel da Paz porque depois de Rio dos Currais ter sido massacrada com a
infecção vinda do estrangeiro, ninguém ficou sabendo que existiu na menor
cidade do país a corporificação da generosidade, da caridade, da voluntariedade
a ajudar o próximo que sofre, enfim, a verdadeira emancipação dos sentimentos
que fazem despertar no indivíduo seu melhor humanismo: a solidariedade.
No final de
julho, a crise de saúde tinha sido debelada graças à comunhão de esforços da
gente simples de Rio dos Currais. As pessoas não tinham mais medo de sair à
rua. Crianças brincavam nos quintais como faziam antes da doença maldita que
matou quase trezentas pessoas da cidade: primos, avós, avôs, tios, irmãos,
sobrinhos, todo munda havia perdido um ente querido. Os mortos ficariam para
sempre na memória dos seus parentes e amigos. Mas sol persistia a iluminar
aquela cidadezinha que aprendeu lições importantíssimas sobre esperança, morte,
loucura e solidariedade durante os dias de sua terrível provação. Personagens
distintos seriam lembrados anos a fio. Alguns, como dona Lucinda, o novo
prefeito e o doutor Cícero Crispim reclamariam para si sempre uma carga
grandiosa de gestos de gratidão associados às lembranças que despertavam. As
velhas ruas, antes denominadas pelos pontos cardeais, agora ostentavam os nomes
desses inesquecíveis filhos ilustres de Rio dos Currais. A quarta rua da
cidade, não porque não existissem nomes dignos de serem homenageados, mas por
uma questão de preservar a memória daqueles dias de luta, foi rebatizada de Rua
da Aurora, para simbolizar o renascimento da fé, da irmandade, da solidariedade
no seio daquele povo temente a Deus. Essa era também a rua onde se situava o
hospital municipal, onde muitos foram salvos da “doença matadeira”.
Os próximos
meses foram de reconstrução da cidade e das vidas. Aos poucos tudo foi sendo
reconduzido à rotina de trabalho para fazer de Rio dos Currais a cidade adorada
pelos turistas que retornariam nas próximas festas de junho.
No janeiro
seguinte, os habitantes da pequena cidade foram unânimes em concordar com o
novo prefeito de que era necessário iniciar os preparativos para a grande festa
que pretendiam realizar naquele ano. Entretanto, havia um problema que se
mostrava incontornável naquele momento. A epidemia devastara as finanças do
município, do comércio, das pessoas, o que limitava a ambição de festejos que
devolvessem a boa reputação de que gozava Rio dos Currais antes do vírus da
morte. Foi quando o senhor de nome Emerenciano pediu a palavra. Ele tinha
setenta e seis anos de idade e era aquele tempo a pessoa mais velha da cidade. Emerenciano Feitosa era seu nome completo. O
senhor que se apresentava para assumir a ordem do discurso, com sua voz frágil,
pausada, porém, firme ao propor a melhor saída para o povo de sua sofrida
cidade, era o mesmo que manifestou sua gratidão à dona Lucinda, quando a
recebeu em sua casa, durante a ação solidária que esta liderou para salvar o
povo de Rio dos Currais da exterminação. No conselho, que ora emprestava as
autoridades ali presentes, dizia:
_ Senhores e
senhoras! - começou encadeando as palavras de forma pausada e com muita
objetividade - sei que não detenho autoridade para impor nada a esta cidade, e
nem desejo fazer qualquer imposição. Sei também o que passamos recentemente.
Carrego, como todos vocês, a dor da perda, a angústia da impotência diante dos
imperativos da vida. Neste momento, no auge da idade que ostento, pergunto-me
por que fui poupado quando jovens e crianças sucumbiram. Mas isso não é o que
importa agora. A resposta a essa minha indagação, apenas Deus me poderá dar. E
creio que isso não tardará acontecer, se merecedor eu for dessa dádiva. No
entanto, o objetivo de minha fala é sugerir aos senhores que este ano façamos uma
festa para nós, diferente do que tem sido até aqui. Ano após ano, Rio dos
Currais prepara festejos para pessoas de outros lugares. Peço que entendam que
eu não estou condenando esta atitude, já que os turistas contribuem fortemente
para o desenvolvimento econômico deste pequeno município, além do mais, é
salutar a interação entre os povos. Não condeno o modo como tem sido organizada
a festa de nosso santo padroeiro. Apenas ressalto que haverá novas
oportunidades para essas grandes festas, dignas da reputação de Rio dos Currais
no Vale do Salitre. E conclamo que neste ano - apenas nesse ano, se for o
entendimento geral - façamos a festa aos moldes antigos. Resgatando esquecidas
tradições que ajudaram a nos tornar o que somos. Façamos a festa de São João para
nós mesmos, como um ato de confraternização, com fogueiras acessas na frente
das casas, com vizinhos interagindo, enfim, com nosso povo festejando esse
desejado renascimento, após sobreviver o mal que se lançou sobre nós. Uma festa
para nós sobreviventes homenagearem aqueles que não puderam estar conosco
agora. Era o que tinha a dizer.
Um momento de
silêncio sucedeu às palavras de Emerenciano Feitosa. Houve uma moção silenciosa
de adesão à proposta. Ninguém se opusera a que a festa naquele ano retomasse o
aspecto antigo de festejos familiares, onde fogueiras eram acessas em frente às
casas, vizinhos se confraternizavam, havia danças de quadrilhas, milho assado
diretamente na fogueira, cozido em panelas de barro, pamonha, broa, bolo,
polenta, angu, mungunzá doce, mungunzá de sal, carne assada, pessoas vestidas
de cangaceiro, camisas quadriculadas, jaquetas de couro cru, chapéus, damas e
cavaleiros rodopiando ao som de sanfona, triângulo, zabumba, tiro de bacamarte,
rojões, jogos de azar, de caipira, tudo que faz dos festejos juninos nas mais
remotas cidadezinhas desse país imenso se transformar num momento de
fraternidade, de alegria, de esperança, de interação, de solidariedade entre
pessoas simples, cuja marcha diária não se resume a comércio, à Economia, a
Mercado, a contar moedas e cadáveres que se avolumam pela opressão do vil
metal, pela decisão de líderes insanos como Etevaldo Elesbão, que conduzia seu
povo a morte, à destruição. Não. Essa era a festa de um povo que dança e canta
para a vida, que na desgraça acolhe seus semelhantes, que se ajudam mutuamente,
ainda que seja preciso dividir o pouco que tenha, que na alegria compartilha
com seus iguais, que sonha com dias melhores, apesar da frieza e perversidade
de seus representantes nas assembleias dos nobres. Enfim, aquela foi uma festa
para comemorar a aurora de Rio dos Currais. Para celebrar o heroísmo de pessoas
como o novo prefeito, Antenor Medeiros, dona Lucinda, os Voluntários do
Casarão, como ficou conhecida a equipe de bravos cidadãos liderada por dona
Lucinda, a magnitude e honradez do doutor Cícero Crispim, que desafiou os
limites de sua sabedoria e saúde para conduzir a luta contra a morte que
pairava sobre Rio dos Currais. A festa
não durou quinze dias como antes da “doença matadeira”, mas os dois dias pelos
quais se estendeu foram dias de reencontro daquela gente simples, crente,
trabalhadora, orgulhosa da bravura com que suportou os dias difíceis de doença
e morte.
Passados dois
anos da grande campanha contra a morte trazida pela doença mortífera que a
Ciência alcunhou de COVID – 19, a gente simples de Rio dos Currais, a menor
cidade do país, com pouco mais de duzentos e trinta habitantes, retomou sua
rotina de trabalho, devoção, solidariedade; e de festejos juninos de fazer inveja
aos maiores carnavais do planeta. Antenor Medeiros foi reeleito prefeito. Dona
Lucinda entrou para apolítica e agora cuida da feitura das leis na Câmara
Municipal. O inexcedível doutor Cícero Crispim, agora aposentado de verdade,
emprega seu tempo a estudar e escrever livros sobre os procedimentos utilizados
no tratamento de doenças respiratórias graves e a ministrar palestras em
faculdades de medicina no litoral. A “Doença Matadeira”, como ficou conhecido,
em Rio dos Currais, o vírus mortal COVID – 19, que infectou mais de um milhão
de pessoas no mundo, levando a morte de centenas de milhares de seres humanos,
em mais de duzentos países, finalmente foi controlada após a comissão de
estudiosos de todas as nações, reunida pela Organização Mundial de Saúde,
desenvolver eficiente vacina, hoje recomendada para todos os indivíduos da
terra. “O mal finalmente foi vencido e o tinhoso aprisionado novamente”, disse
o novo padre na primeira missa que celebrou na igreja de São João, na pequena
cidade de Rio dos Currais. “Deus seja louvado”, continuou. “Para sempre seja
louvado”, responderam todos, em uníssono, a ecoar por todo Vale do Salitre.
Ponciano Ratel.