quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Walt Whitman – Canção de Mim Mesmo

Walt Whitman foi um poeta, ensaísta e jornalista norte-americano, considerado por muitos como o "pai do verso livre". Paulo Leminski o considerava o grande poeta da Revolução Americana, como Maiakovski seria o grande poeta da Revolução Russa.


Canção de Mim Mesmo

Eu celebro o eu, num canto de mim mesmo,
E aquilo que eu presumir também presumirás,
Pois cada átomo que há em mim igualmente habita em ti.
Descanso e convido a minha alma,
Deito-me e descanso tranquilamente, observando uma haste da relva de verão.
Minha língua, todo átomo do meu sangue formado deste solo, deste ar,
Nascido aqui de pais nascidos aqui de pais o mesmo e seus pais também o mesmo,
Eu agora com trinta e sete anos de idade, com saúde perfeita, dou início,
Com a esperança de não cessar até morrer.
Crenças e escolas quedam-se dormentes
Retraindo-se por hora na suficiência do que não, mas nunca esquecidas,
Eu me refugio pelo bem e pelo mal, eu permito que se fale em qualquer casualidade,
A natureza sem estorvo, com energia original.

Casas e cômodos cheios de perfumes, prateleiras apinhadas de perfumes,
Eu mesmo respiro a fragrância, a reconheço e com ela me deleito,
A essência bem poderia inebriar-me, mas não permitirei.
A atmosfera não é um perfume, mas tem o gosto da essência, não tem odor,
Existe para a minha boca, eternamente; estou por ela apaixonado
Irei até a colina próxima da floresta, despir-me-ei de meu disfarce e ficarei nu,
Estou louco para que ela entre em contato comigo.
A fumaça da minha própria respiração,
Ecos, sussurros, murmúrios vagos, amor de raiz, fio de seda, forquilha e vinha,
Minha expiração e inspiração, a batida do meu coração, a passagem de sangue e de ar através de meus pulmões,
O odor das folhas verdes e de folhas ressecadas, da praia e das pedras escuras do mar, e de palha no celeiro,
O som das palavras expelidas de minha voz aos remoinhos do vento,
Alguns beijos leves, alguns abraços, o envolvimento de um abraço,
A dança da luz e a sombra nas árvores, à medida que se agitam os ramos flexíveis,
O deleite na solidão ou na correria das ruas, ou nos campos e colinas,
O sentimento de saúde, o gorjeio do meio-dia, a canção de mim mesmo erguendo-se da cama e encontrando o sol.
Achaste que mil acres são demais? Achaste a terra grande demais?
Praticaste tanto para aprender a ler?
Sentistes  tanto orgulho por entenderes o sentido dos poemas?
Fica esta noite e este dia comigo e será tua a origem de todos os poemas,
Será teu o bem da terra e do sol (há milhões de sóis para encontrar),
Não possuíras coisa alguma de segunda ou de terceira mão, nem enxergarás através dos olhos de quem já morreu, nem te alimentarás outra vez dos fantasmas que há nos livros.
Do mesmo modo não verás mais através de meus olhos, nem tampouco receberás coisa alguma de mim,
Ouvirás o que vem de todos os lados e saberás filtrar tudo por ti mesmo.

Eu ouvi a conversa dos falantes, a conversa sobre o início e sobre o fim,
Mas não falo nem do início nem do fim.
Nunca houve mais iniciativa do que há agora,
Nem mais juventude ou idade do que há agora,
E jamais haverá mais perfeição do que há agora,
Nem mais paraíso ou inferno do que há agora,
O anseio, o anseio, o anseio,
Sempre o anseio procriador do mundo.
Na obscuridade a oposição equivale ao avanço, sempre substância e acréscimo, sempre o sexo,
Sempre um nó de identidade, sempre distinção, sempre uma geração de vida.
Não vale elaborar, eruditos e ignorantes sentem que é assim.
Certeza tal como a mais certa certeza, aprumados em nossa verticalidade, bem fixados, suportados em vigas,
Robustos como um cavalo, afetuosos, altivos, elétricos,
Eu e este mistério aqui estamos de pé.
Clara e doce é minha alma e claro e doce é tudo aquilo que não é minha alma.
Faltando um falta o outro, e o invisível é provado pelo visível
Até que este se torne invisível e receba a prova por sua vez.
Apresentando o melhor e isolando do pior, a idade agasta a idade,
Conhecendo a adequação e a equanimidade das coisas, enquanto eles discutem eu mantenho-me em silêncio e vou me banhar e admirar a mim mesmo.
Bem-vindo é todo órgão e atributo de mim, e também os de todo homem cordial e limpo.
Nenhuma polegada ou qualquer partícula de uma polegada é vil e nenhum será menos familiar que o resto.
Estou satisfeito – vejo, danço, rio, canto;
Quando o companheiro amoroso dorme abraçado a mim a noite inteira e depois vai embora ao raiar do dia com passos silenciosos,
Deixando-me cestas cobertas com toalhas brancas enchendo a casa com sua exuberância,
Devo adiar minha aceitação e compreensão e gritar pelos meus olhos,
Para que deixem de fitar a estrada ao longe e para além dela
E imediatamente calculem e mostrem-me para um centavo,
O valor exato de um e o valor exato de dois, e o que está à frente?

Traiçoeiros e curiosos estão à minha volta
Pessoas com quem me encontro, os efeitos que a minha infância tem sobre mim, ou o bairro e a cidade em que vivo, ou a nação,
As últimas datas, descobertas, invenções, sociedades, autores antigos e novos,
Meu jantar, roupas, amigos, olhares, cumprimentos, dívidas,
A indiferença real ou fantasiosa de um homem ou mulher que eu amo,
A doença de alguém de minha gente ou de mim mesmo, ou ato doentio, ou perda ou falta de dinheiro, depressões ou exaltações,
Batalhas, os horrores da guerra fratricida, a febre de notícias duvidosas, os terríveis eventos;
Essas imagens vêm a mim dia e noite, e partem de mim outra vez,
Mas não são o meu verdadeiro Ser.
Longe do que puxa e do que arrasta, ergue-se o que de fato eu sou,
Ergue-se divertido, complacente, compassivo, ocioso, unitário,
Olha para baixo, está ereto, ou descansa o braço sobre certo apoio impalpável,
Olhando com a cabeça pendida para o lado, curioso sobre o que está por vir,
Tanto dentro como fora do jogo, e o assistindo, e intrigado por ele.
No passado vejo meus próprios dias quando suei através do nevoeiro com linguistas e contendores,
Não trago zombarias ou argumentos, apenas testemunho e aguardo.
(…)

Uma palavrinha sobre os fazedores de poemas rápidos e modernos


É muito fácil parecer moderno
enquanto se é o maior idiota jamais nascido;
eu sei; eu joguei fora um material horrível
mas não tão horrível como o que leio nas revistas;
eu tenho uma honestidade interior nascida de putas e hospitais
que não me deixará fingir que sou
uma coisa que não sou —
o que seria um duplo fracasso: o fracasso de uma pessoa
na poesia
e o fracasso de uma pessoa
na vida.
e quando você falha na poesia
você erra a vida,
e quando você falha na vida
você nunca nasceu
não importa o nome que sua mãe lhe deu.

As arquibancadas estão cheias de mortos
aclamando um vencedor
esperando um número que os carregue de volta
para a vida,
mas não é tão fácil assim—
tal como no poema
se você está morto
você podia também ser enterrado
e jogar fora a máquina de escrever
e parar de se enganar com
poemas cavalos mulheres a vida:
você está entulhando a saída — portanto saia logo
e desista das
poucas preciosas
páginas.


Charles Bukowski

As Flores do Mal de Charles Baudelaire

Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867), poeta, boêmio e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.

Em 1857 é lançado o livro As flores do mal. Baudelaire é acusado de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos.

Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse.

Por: Adão Lima de Souza


A Destruição

Sem cessar a meu lado o Demônio se agita,
E nada ao meu redor como um ar impalpável;
Eu o levo aos meus pulmões, onde ele arde e crepita,
Inflando-os de um desejo eterno e condenável.

Às vezes, ao saber do amor que a arte me inspira,
Assume a forma da mulher que eu vejo em sonhos,
E, qual tartufo afeito às tramas da mentira,
Acostuma-me a boca aos seus filtros medonhos.

Ele assim me conduz, alquebrado e ofegante,
Já dos olhos de Deus afinal tão distante,
Às planícies do Tédio, infindas e desertas,

E lança-me ao olhar imerso em confusão
Trajes imundos e feridas entreabertas
- O aparato sangrento e atroz da Destruição!

Poema do livro "As Flores do Mal". 


Charles Bukowski: O PÁSSARO AZUL


Há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.

há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
(…) há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você ?


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Os sonhos


Os sonhos não cabem mais no pedaço de papel
Não cabem mais numa poesia.

Os sonhos são eternos
Inspiram a vida
Os sonhos não são fugaz
São eternas fugas.

Os sonhos fogem da realidade
Na busca  de outras alternativas.
Inspiram uma pitada de descoberta
Traz o tempero da vida
Os sonhos são eternos aprendizados.
Na busca por mudanças
Dessa vida imunda

Os sonhos acrescentam
A força na luta
Os sonhos brincam com os nossos pensamentos
Os sonhos brindam com as nossas crises.
Os sonhos brindam com os nossos pensamentos
Os sonhos brincam com as nossas crises.
Nessa relação circular
Os sonhos apresentam como peças de teatro de uma  outra alternativa.




domingo, 2 de novembro de 2014

Desídia


Eu amante da desídia
Procuro novas colorações para o amanhecer
Pretendo tons cinzas-escuros
Em que se possa dormir mais.

Observo vestígios da noite incompleta
Em que o amor não chegou de todo
E o dia amanheceu com urgência
Trazendo estremecimentos de desejos não vividos
Como se o tempo renegasse seu prolongamento
E o amor carecesse de pressa.

A noite fluía como um rio caudaloso
Para a precipitação das manhãs efêmeras
Ocultas nos sombreamentos do dia
Que as horas desproporcionam.
Aceito o meio-dia como precocidade da noite
Com seu coloramento negro,
Sua propensão ao amor e ao esquecimento.
 
Enquanto isso, o distanciamento da lua
Prepara novos amanhecimentos.
 Adão Lima de Souza

Do Livro: A Vela na Demasia de Vento.

sábado, 27 de setembro de 2014

Ditadura do proletariado em Gotham City: Artigo de Slavoj Žižek sobre “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge”


Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge confirma mais uma vez como os blockbusters de Hollywood são indicadores precisos da situação ideológica da nossa sociedade. A narrativa (resumida) se dá da seguinte maneira. Oito anos depois dos eventos de Batman – O Cavaleiro das Trevas, capítulo anterior da saga Batman, a lei e a ordem prevalecem em Gotham City: sob os extraordinários poderes do Ato Dent, o comissário Gordon praticamente erradicou o crime violento e organizado. No entanto, ele se sente culpado pela cobertura dos crimes de Harvey Dent (Dent morreu ao tentar matar o filho de Gordon, salvo por Batman, que assumiu a culpa em nome da manutenção do mito de Dent, levando a uma demonização de Batman como vilão de Gotham) e planeja admitir a conspiração em um evento público de celebração a Dent, mas acaba concluindo que a cidade não está preparada para a verdade. Bruce Wayne, que não atua mais como Batman, vive isolado na própria Mansão enquanto sua empresa desmorona depois de ter investido em um projeto de energia limpa criado para aproveitar a energia nuclear, mas encerrado quando ele descobriu que o núcleo poderia ser transformado em uma bomba. A lindíssima Miranda Tate, membra do conselho administrativo da Wayne Enterprises, convence Wayne a refazer a sociedade e continuar com seus trabalhos filantrópicos.

Aqui entra o (primeiro) vilão do filme: Bane, líder terrorista e antigo membro da Liga das Sombras, consegue a cópia do discurso de Gordon. Depois que as tramas financeiras de Bane quase levam a empresa de Wayne à falência, Wayne confia a Miranda a tarefa de controlar seus negócios, além de ter com ela um breve caso amoroso. (Nesse aspecto ela compete com a gata-ladra Selina Kyle, que rouba dos ricos para redistribuir a riqueza, mas acaba se juntando a Wayne e às forças da lei e da ordem.) Ao descobrir a movimentação de Bane, Wayne retorna como Batman e confronta Bane, que afirma ter assumido a Liga das Sombras após a morte de Ra’s Al Ghul. Depois de deixar Batman gravemente ferido em um combate corpo a corpo, Bane o coloca numa prisão de onde é praticamente impossível fugir. Seus companheiros de prisão contam para Wayne a história da única pessoa que conseguiu escapar: uma criança motivada pela necessidade e pela mera força de vontade. Enquanto o prisioneiro Wayne se recupera dos ferimentos e se prepara para ser Batman de novo, Bane consegue transformar Gotham City em uma cidade-Estado isolada. Primeiro ele atrai para o subsolo a maior parte dos policiais de Gotham e os prende lá; depois provoca explosões que destroem a maioria das pontes que conectavam Gotham City ao continente, anunciando que qualquer tentativa de deixar a cidade resultaria na detonação do núcleo de Wayne, do qual se apoderou e transformou em uma bomba.

Chegamos então ao momento crucial do filme: a tomada de poder por parte de Bane acontece junto com uma vasta ofensiva político-ideológica. Bane revela publicamente o acobertamento da morte de Dent e liberta os prisioneiros detidos pelo Ato Dent. Condenando os ricos e poderosos, ele promete devolver o poder ao povo, convocando as pessoas comuns a “tomarem a cidade de volta” – Bane revela-se como “o manifestante definitivo do Occupy Wall Street, convocando os 99% a se juntarem para derrubar as elites sociais”[1]. Segue-se então a ideia do filme de poder do povo: uma sequência mostra  uma série de julgamentos e execuções dos ricos, as ruas tomadas pelo crime e pela vilania… alguns meses depois, enquanto Gotham City continua sofrendo o terror popular, Wayne consegue fugir da prisão, retorna a Gotham como Batman e convoca os amigos para ajudá-lo a libertar a cidade e desarmar a bomba nuclear antes que ela exploda. Batman confronta e domina Bane, mas Miranda intervém e apunhala Batman – a benfeitora social revela-se como Talia al Ghul, filha de Ra’s: foi ela que escapou da prisão quando criança e foi Bane que a ajudou a fugir. Depois de comunicar seu plano de terminar a tarefa do pai de destruir Gotham, Talia foge. Na confusão que se segue, Gordon destrói o dispositivo que permitia a detonação remota da bomba enquanto Selina mata Bane, permitindo que Batman vá atrás de Talia. Ele tenta forçá-la a levar a bomba para a câmara de fusão onde pode ser estabilizada, mas Talia inunda a câmara. Talia morre quando seu caminhão bate, confiante de que a bomba não pode ser detida. Usando um helicóptero especial, Batman transporta a bomba para além dos limites da cidade, onde ela explode sobre o oceano e supostamente o mata.

Agora Batman é celebrado como um herói cujo sacrifício salvou Gotham City, enquanto Wayne é tido como morto nos motins. Após seus bens serem divididos, Alfred vê Bruce e Selina juntos em um café em Florença, enquanto Blake, jovem policial honesto que conhecia a identidade de Batman, herda a Batcaverna. Em suma, “Batman salva a situação, aparece incólume e continua com uma vida normal, enquanto outro o substitui no papel de defender o sistema”[2]. A primeira pista dos fundamentos ideológicos desse final é dada por Gordon, que, no (suposto) enterro de Wayne, lê as últimas linhas de Um conto de duas cidades, de Dickens: “Esta é, sem dúvida, a melhor coisa que faço e que jamais fiz; este é, sem dúvida, o melhor descanso que terei e que jamais tive”. Alguns críticos do filme interpretaram essa citação como um indício de que o filme “atinge o nível mais nobre da arte ocidental. O filme apela para o centro da tradição norte-americana – o ideal do nobre sacrifício pelo povo comum. Batman deve se humilhar para ser exaltado e renunciar à própria vida para encontrar uma nova. [...] Como máxima figura de Cristo, Batman sacrifica a si para salvar os outros”[3].

Dessa perspectiva, com efeito, Dickens está apenas a um passo de distância de Cristo no Calvário: “Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?” (Mt 16:25-26 daBíblia de Jerusalém). O sacrifício de Batman como repetição da morte de Cristo? Essa ideia não seria comprometida pela última cena do filme (Wayne com Selina em um café em Florença)? O equivalente religioso desse final não seria a conhecida ideia blasfema de que Cristo realmente sobreviveu à crucificação e teve uma vida longa e pacífica (na Índia, ou talvez no Tibete, de acordo com algumas fontes)? A única maneira de remir essa cena final seria interpretá-la como um devaneio (alucinação) de Alfred, que se senta sozinho em um café em Florença. Outra característica dickensiana do filme é a queixa despolitizada sobre a lacuna entre ricos e pobres – no início do filme, Selina sussurra para Wayne enquanto eles dançam em um baile exclusivo da elite: “Está vindo uma tempestade, sr. Wayne. É melhor que estejam preparados. Pois quando ela chegar, todos se perguntarão como acharam que poderiam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto”. Nolan, como todo bom liberal, está “preocupado” com essa disparidade e reconhece que essa preocupação impregnou o filme:

O que vejo do filme relacionado ao mundo real é a ideia de desonestidade. O filme inteiro trata da chegada do seu ponto crítico. [...] A ideia de justiça econômica perpassa o filme, e por duas razões. Primeiro, Bruce Wayne é um bilionário. Isso tem de ser levado em conta. [...] E segundo, há muitas coisas na vida, e a economia é uma delas, em que precisamos confiar em grande parte do que nos dizem, pois a maioria de nós se sente desprovida das ferramentas analíticas para saber o que está acontecendo. [...] Não acho que existe uma perspectiva de direita ou de esquerda no filme. Ele faz apenas uma avaliação honesta, ou uma exploração honesta, do mundo em que vivemos – de coisas que nos preocupam.[4]

Por mais que os espectadores saibam que Wayne é extremamente rico, eles tendem a se esquecer de onde vem a riqueza dele: fabricação de armas e especulação financeira, e é por isso que as jogadas de Bane na Bolsa de Valores podem destruir seu império – traficante de armas e especulador, esse é o verdadeiro segredo por trás da máscara do Batman. De que modo o filme lida com isso? Ressuscitando o tema arquetípico dickensiano do bom capitalista que se envolve no financiamento de orfanatos (Wayne) versus o mau e ganancioso capitalista (Stryver, como em Dickens). Nessa moralização dickensiana excessiva, a disparidade econômica é traduzida na “desonestidade” que deveria ser “honestamente” analisada, embora não tenhamos nenhum mapeamento cognitivo confiável, e uma abordagem “honesta” como essa nos leva a mais um paralelo com Dickens – é como afirmou Jonathan (corroteirista), irmão de Christopher Nolan, sem rodeios: “Para mim, Um conto de duas cidades foi o retrato mais angustiante de uma civilização reconhecível e descritível que se desintegrou completamente em pedaços. Com os terrores em Paris, na França daquela época, não é difícil imaginar que as coisas dariam tão errado assim”[5]. As cenas do vingativo levante populista no filme (uma multidão sedenta pelo sangue dos ricos que os ignoraram e exploraram) evocam a descrição de Dickens do Reino do Terror, tanto que, embora não tenha nada a ver com política, o filme segue o romance de Dickens ao retratar “honestamente” os revolucionários como fanáticos possuídos, e assim fornece

a caricatura do que, na vida real, seriam revolucionários comprometidos ideologicamente no combate da injustiça estrutural. Hollywood conta o que oestablishment quer que saibamos – que os revolucionários são criaturas brutais, sem nenhum respeito pela vida humana. Apesar da retórica emancipatória sobre a libertação, eles têm projetos sinistros por trás. Portanto, quaisquer que sejam as razões, elas precisam ser eliminadas.[6]

Tom Charity destacou corretamente “a defesa que o filme faz do establishmentna forma de bilionários filantrópicos e uma polícia corrupta” – na sua desconfiança das pessoas que resolvem as coisas com as próprias mãos, o filme “demonstra tanto o desejo por justiça social quanto o medo do que realmente pode parecer nas mãos de uma multidão”[7]. Aqui, Karthick levanta uma questão bem clara sobre a imensa popularidade da figura do Coringa no filme anterior: qual o motivo de uma atitude tão hostil para com Bane quando o Coringa foi tratado com tanta mansidão no filme anterior? A resposta é simples e convincente:

O Coringa, que clama por anarquia na sua mais pura manifestação, enfatiza a hipocrisia da civilização burguesa como ela existe, mas é impossível traduzir suas visões em uma ação de massa. Bane, por outro lado, representa uma ameaça existencial ao sistema de opressão. [...] Sua força não é apenas a psique, mas também sua capacidade de comandar as pessoas e mobilizá-las rumo a um objetivo político. Ele representa a vanguarda, o representante organizado dos oprimidos que promove a luta política em nome deles para gerar mudanças sociais. Tamanha força, com o maior dos potenciais subversivos, não tem lugar dentro do sistema. Ela precisa ser eliminada.[8]

No entanto, ainda que Bane não tenha o fascínio do Coringa de Heath Ledger, há uma característica que o distingue desse último: o amor incondicional, a mesma fonte da sua dureza. Em uma cena curta mas comovente, vemos como, em um ato de amor no meio do sofrimento terrível, Bane salvou a garota Talia sem se importar com as consequências e pagando um preço terrível por isso (foi espancado quase até a morte por defendê-la). Karthick tem toda razão ao situar esse acontecimento dentro da longa tradição, de Cristo a Che Guevara, que exalta a violência como uma “obra do amor”, como nas famosas palavras do diário de Che Guevara: “Devo dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem essa qualidade”[9]. O que encontramos aqui nem é tanto a “cristificação de Che”, mas sim uma “cheização do próprio Cristo” – o Cristo cujas palavras “escandalosas” de Lucas (“se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” [Lc 14:26]) apontam exatamente na mesma direção que a famosa citação de Che: “É preciso ser duro, mas sem perder a ternura”. A afirmação de que “o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor” deveria ser interpretada juntamente com a declaração muito mais “problemática” de Guevara sobre os revolucionários como “máquinas de matar”:

O ódio é um elemento da luta; o ódio impiedoso do inimigo que nos ergue acima e além das limitações naturais do homem e nos transforma em eficazes, violentas, seletivas e frias máquinas de matar. Assim devem ser nossos soldados; um povo sem ódio não derrota um inimigo brutal.

Ou, parafraseando Kant e Robespierre mais uma vez: o amor sem crueldade é impotente; a crueldade sem amor é cega, paixão efêmera que perde todo seu vigor. Guevara está parafraseando as declarações de Cristo sobre a unidade do amor e da espada – em ambos os casos, o paradoxo subjacente consiste nisto: o que torna o amor angelical, o que o eleva acima da mera sentimentalidade instável e patética, é essa mesma crueldade, o seu elo com a violência – é esse elo que eleva o amor acima e além das limitações naturais do homem e o transforma em pulsão incondicional. É por isso que, voltando a O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o único amor autêntico no filme é o de Bane, o “amor do terrorista”, em nítido contraste a Batman.

Nesse mesmo viés, a figura de Ra’s, pai de Talia, merece um exame mais cuidadoso. Ra’s é uma mistura de características árabes e orientais, um agente do virtuoso terror lutando para contrabalancear a corrompida civilização ocidental. O personagem é interpretado por Liam Neeson, ator cuja persona na tela geralmente irradia uma nobre bondade e sabedoria (ele faz o papel de Zeus em Fúria de Titãs), e que também representa Qui-Gon Jinn em A Ameaça Fantasma, primeiro episódio da série Star Wars. Qui-Gon é um cavaleiro Jedi, mentor de Obi-Wan Kenobi, bem como o descobridor de Anakin Skywalker, acreditando que Anakin é O Escolhido que restituirá o equilíbrio do universo, ignorando os alertas de Yoda sobre a natureza instável de Anakin; no final de A Ameaça Fantasma, Qui-Gon é morto por Darth Maul[10].

Na trilogia Batman, Ra’s também é professor do jovem Wayne: em Batman Begins, ele encontra Wayne em uma prisão chinesa; apresentando-se como Henri Ducard, ele oferece um “caminho” para o garoto. Depois que Wayne é libertado, ele segue até a fortaleza da Liga das Sombras, onde Ra’s está esperando, embora se apresente como servo de outro homem chamado Ra’s Al Ghul. Depois de um longo e doloroso treinamento, Ra’s explica que Bruce deve fazer o que for preciso para combater o mal, embora revele que eles treinaram Bruce para liderar a Liga com o intuito de destruir Gotham City, que eles acreditam ter se tornado irremediavelmente corrupta. Portanto, Ra’s não é a simples encarnação do Mal: ele representa a combinação de virtude e terror, a disciplina igualitária que combate um império corrupto, e assim pertence ao fio condutor (na ficção recente) que vai de Paul Atreides em Duna até Leônidas em300 de Esparta. E é crucial que Wayne seja seu discípulo: Wayne foi formado como Batman por ele.

Duas críticas do senso-comum se apresentam aqui. A primeira é de que houveviolência e matanças monstruosas nas revoluções reais, desde o estalinismo ao Khmer Vermelho, por isso está claro que o filme não está apenas engajado na imaginação revolucionária. A segunda, oposta, é esta: o atual movimento Occupy Wall Street não foi violento, seu objetivo definitivamente não era um novo reino do terror; na medida em que se espera que a revolta de Bane extrapole a tendência imanente do movimento OWS, o filme, portanto, deturpa de maneira absurda seus objetivos e estratégias. Os atuais protestos antiglobalistas são o exato oposto do terror brutal de Bane: este representa a imagem espelhada do terror estatal, uma seita fundamentalista e homicida dominada e controlada pelo terror, e não a sua superação por meio da auto-organização popular… As duas críticas compartilham a rejeição da figura de Bane. A resposta a essas duas críticas é múltipla.

Primeiro, devemos esclarecer o atual escopo da violência – a melhor resposta para a afirmação de que a reação violenta da multidão à opressão é pior que a opressão original foi dada por Mark Twain no seu Um ianque na corte do rei Artur: “Houve dois ‘Reinos do Terror’, se bem nos lembramos; um forjado na incandescente paixão, outro no desumano sangue frio. [...] Mas todos os nossos temores, que os tenhamos pelo menor terror, o momentâneo, por assim dizer; pois o que é o terror da morte súbita pelo machado se comparado à morte em toda uma vida de fome, frio, insulto, crueldade e desilusão? O cemitério de qualquer cidade pode bem conter os caixões cheios desse breve terror, que todos aprendemos com afinco a temer e lamentar; mas a França inteira mal conteria os caixões cheios daquele outro terror, mais antigo e verdadeiro, o terror de amargura e atrocidade indizíveis, que nenhum de nós aprendeu a encarar em toda sua amplitude ou desprezo que merece”.

Depois, deveríamos desmistificar o problema da violência, rejeitando afirmações simplistas de que o comunismo do século XX agiu com uma violência homicida excessiva demais, e de que deveríamos tomar cuidado para não cair mais uma vez nessa armadilha. Com efeito, trata-se de uma terrível verdade – mas esse foco voltado diretamente para a violência obscurece uma questão basilar: o que houve de errado no projeto comunista do século XX como tal, qual foi o ponto fraco imanente desse projeto que impulsionou o comunismo a recorrer (não só) aos comunistas no poder para a violência irrestrita? Em outras palavras, não basta dizer que os comunistas “negligenciaram o problema da violência”: foi um aspecto sócio-político mais profundo que os impulsionou à violência. (O mesmo se aplica à ideia de que os comunistas “negligenciaram a democracia”: seu projeto geral de transformação social impôs sobre eles esse “negligenciar”.) Portanto, não é apenas o filme de Nolan que foi incapaz de imaginar o poder autêntico do povo – os próprios movimentos “reais” de emancipação radical também não o fizeram e continuam presos nas coordenadas da antiga sociedade, e, por essa razão, muitas vezes o efetivo “poder do povo” foi esse horror violento.

E, por último, mas não menos importante, é muito simples dizer que não há potencial violento no movimento OWS e similares – há sim uma violência em jogo em todo processo emancipatório autêntico: o problema com o filme é que ele traduziu essa violência de uma maneira errada em terror homicida. Qual é, então, a sublime violência em relação à qual até mesmo o mais brutal assassinato é um ato de fraqueza? Façamos uma digressão em Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, que conta a história dos estranhos eventos na capital sem nome de um país democrático não identificado. Quando a manhã do dia das eleições é arruinada por chuvas torrenciais, a quantidade de eleitores presentes é extremamente baixa, mas o tempo melhora no meio da tarde e a população segue em massa para as seções eleitorais. No entanto, o alívio do governo logo acaba quando a contagem de votos revela que 70% das cédulas na capital foram deixados em branco. Frustrado por esse aparente lapso civil, o governo dá aos cidadãos a chance de refazer o fato uma semana depois, em mais um dia de eleição. O resultado é pior: agora 83% dos votos foram brancos. Os dois principais partidos políticos – o governante partido da direita (p.d.d.) e seu principal adversário, o partido do meio (p.d.m.) – entram em pânico, enquanto o infeliz e marginalizado partido da esquerda (p.d.e.) apresenta uma análise afirmando que os votos brancos são, essencialmente, um voto por sua agenda progressiva. Sem saber como responder a um protesto benigno, mas certo de que existe uma conspiração antidemocrática, o governo rapidamente rotula o movimento de “terrorismo puro e duro” e declara estado de emergência, permitindo a suspensão de todas as garantias constitucionais e adotando uma série de medidas cada vez mais drásticas: os cidadãos são apanhados aleatoriamente e desaparecem em interrogatórios secretos, a polícia e a sede do governo saem da capital, proibindo a entrada e a saída da cidade e, por fim, fabricando seu próprio líder terrorista. A cidade toda continua funcionando quase normalmente, as pessoas se esquivam de todas as ofensivas do governo com uma harmonia inexplicável e com um verdadeiro nível gandhiano de resistência não violenta… isso, a abstenção dos eleitores, é um exemplo de “violência divina” verdadeiramente radical que desperta reações de pânico brutal nos detentores do poder.

Voltando a Nolan, a trilogia dos filmes do Batman, portanto, segue uma lógica imanente. Em Batman Begins, o herói continua dentro dos limites de uma ordem liberal: o sistema pode ser defendido com métodos moralmente aceitáveis. O Cavaleiro das Trevas é de fato uma nova versão de dois clássicos de faroeste de John Ford (Sangue de Heróis e O Homem Que Matou o Facínora) que retratam como, para civilizar o ocidente selvagem, é preciso “publicar a lenda” e ignorar a verdade – em suma, como nossa civilização tem de se fundamentar em uma Mentira: é preciso quebrar as regras para defender o sistema. Ou, dito de outra forma, em Batman Begins, o herói é simplesmente uma figura clássica do vigilante urbano que pune os criminosos naquilo que a polícia não pode; o problema é que a polícia, órgão responsável pela imposição das leis, relaciona-se de maneira ambígua à ajuda de Batman: enquanto admite sua eficácia, ela também considera Batman uma ameaça ao seu monopólio do poder e uma testemunha da sua ineficácia. No entanto, a transgressão de Batman aqui é puramente formal, consiste em agir em nome da lei sem a legitimação para fazê-lo: nos seus atos, ele nunca viola a lei. O Cavaleiro das Trevas muda essas coordenadas: o verdadeiro rival de Batman não é o Coringa, seu oponente, mas Harvey Dent, o “cavaleiro branco”, o novo e agressivo promotor público, um tipo de vigilante oficial cuja batalha fanática contra o crime o conduz ao assassinato de pessoas inocentes e o destrói. É como se Dent fosse a resposta à ordem legal da ameaça de Batman: contra a vigilante luta de Batman, o sistema gera seu próprio excesso ilegal, seu próprio vigilante, muito mais violento que Batman, violando diretamente a lei. Desse modo, há uma justiça poética no fato de que, quando Bruce planeja revelar ao público sua identidade como Batman, Dent o interrompe e se apresenta como Batman – ele é“mais Batman que o próprio Batman”, efetivando a tentação à qual Batman ainda era capaz de resistir. Então quando, no final do filme, Batman assume os crimes cometidos por Dent para salvar a reputação do herói popular que incorpora a esperança para o povo comum, seu ato modesto tem uma ponta de verdade: Batman, de certa forma, devolve o favor a Dent. Seu ato é um gesto de troca simbólica: primeiro Dent toma para si a identidade de Batman, e depois Wayne – o Batman verdadeiro – toma para si os crimes de Dent.

Por fim, O Cavaleiro das Trevas Ressurge ultrapassa ainda mais os limites: Bane não seria Dent levado ao extremo, à sua autonegação? Dent que chega à conclusão de que o sistema é injusto, de modo que, para combater a injustiça com eficácia, é preciso atacar diretamente o sistema e destruí-lo? E, como parte da mesma atitude, Dent que perde as últimas inibições e está pronto para usar toda sua brutalidade assassina para atingir esse objetivo? O advento dessa figura muda a constelação inteira: para todos os participantes, inclusive Batman, a moralidade é relativizada, torna-se uma questão de conveniência, algo determinado pelas circunstâncias: é uma guerra de classes aberta, tudo é permitido para defender o sistema quando estamos lidando não só com gângsteres malucos, mas com uma revolta popular.

Será, então, que isso é tudo? O filme deveria ser categoricamente rejeitado por quem se envolve em lutas emancipatórias radicais? As coisas são mais ambíguas, e é preciso interpretar o filme da maneira que se interpreta um poema político chinês: as ausências e as presenças surpreendentes também contam. Recordemos a antiga história francesa sobre uma esposa que reclama do melhor amigo do marido, dizendo que o amigo tem se insinuado sexualmente para ela: leva algum tempo para que o amigo surpreso entenda a mensagem – de uma maneira invertida, ela o está incitando a seduzi-la… É como o inconsciente freudiano que não conhece a negação: o que importa não é um juízo negativo sobre algo, mas o simples fato de que esse algo seja mencionado – em O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o poder do povo ESTÁ AQUI, encenado como um Evento, em um passo fundamental dado a partir dos oponentes habituais de Batman (criminosos megacapitalistas, gângsteres e terroristas).

Temos aqui a primeira pista – a perspectiva de que o movimento OWS tome o poder e estabeleça a democracia do povo em Manhattan é nítida e completamente tão absurda e irreal que não podemos deixar de fazer a seguinte pergunta: POR QUE UM IMPORTANTE BLOCKBUSTER DE HOLLYWOOD SONHA COM ISSO, POR QUE EVOCA ESSE ESPECTRO? Por que sequer sonhar com o OWS culminando em uma violenta tomada de poder? A resposta óbvia (manchar o OWS com acusações de que ele guarda um potencial terrorista totalitário) não é o bastante para explicar a estranha atração exercida pela perspectiva do “poder do povo”. Não admira que o funcionamento apropriado desse poder continue branco, ausente: nenhum detalhe é dado sobre como funciona esse poder do povo, sobre o que as pessoas mobilizadas estão fazendo (é preciso lembrar que Bane diz que as pessoas podem fazer o que quiserem – ele não impõe sobre elas a sua própria ordem).

É por isso que a crítica externa do filme (“sua retratação do reino do OWS é uma caricatura ridícula”) não basta – a crítica tem de ser imanente, tem de situar dentro do próprio filme uma multiplicidade de sinais que aponte para o Evento autêntico. (Recordemos, por exemplo, que Bane não é apenas um terrorista brutal, mas sim uma pessoa de profundo amor e sacrifício.) Em suma, a ideologia pura não é possível, a autenticidade de Bane TEM de deixar rastros na tecitura do filme. É por isso que o filme merece uma leitura mais íntima: o Evento – a “república do povo de Gotham City”, a ditadura do proletariado sobre Manhattan – é imanente ao filme, é o seu centro ausente.

[1] Tyler O’Neil, “Dark Knight and Occupy Wall Street: The Humble Rise”,Hillsdale Natural Law Review, 21 de  julho de 2012.
[2] Karthick RM, “The Dark Knight Rises a ‘Fascist’?”Society and Culture, 21 de julho de 2012.
[3] Tyler O’Neil, cit.
[4] Christopher Nolan, entrevista na Entertainment 1216 (julho de 2012), p. 34.
[5] Entrevista de Christopher e Jonathan Nolan ao Buzzine Film.
[6] Karthick, cit.
[7] Forrest Whitman, “The Dickensian Aspects of The Dark Knight Rises”, 21 de julho de 2012.
[8] Karthick, cit.
[9] Citado em Jon Lee Anderton, Che Guevara: A Revolutionary Life, New York: Grove 1997, p. 636-637.
[10] Notemos a ironia do fato de que o filho de Neeson é um xiita devoto, e que o próprio Neeson às vezes fala sobre a sua futura conversão ao islamismo. 


terça-feira, 5 de agosto de 2014

KARL MARX E FRIEDRICH ENGELS: Prefácio à Ideologia Alemã



Até agora, os homens formaram sempre ideias falsas sobre si mesmos, sobre aquilo que são ou deveriam ser. Organizaram as suas relações mútuas em função das representações de Deus, do homem normal, etc., que aceitavam.

Estes produtos do seu cérebro acabaram por dominá-los; apesar de criadores, inclinaram-se perante as suas próprias criações. Libertemo-los, portanto das quimeras, das ideias, dos dogmas, dos seres imaginários cujo jugo os faz degenerar.

Revoltemo-nos contra o império dessas ideias.

Ensinemos os homens a substituir essas ilusões por pensamentos que correspondam à essência do homem, afirma um; a ter perante elas uma atitude crítica, afirma outro; a tirá-las da cabeça, diz um terceiro e a realidade existente desaparecerá.




sábado, 2 de agosto de 2014

Corsário


Do cais, ao longe,
Avistam-se corsários rumo ao horizonte
Levam alimento, agasalhos, sonhos.
Precisamos manter o comércio
E a comunicação com outros mundos.

Disseram-nos que havia outros mundos
E que o mar era o caminho
E nos encheram de esperança e medo.

Sonhamos com as pessoas que esperam
Ansiosamente no outro ancoradouro
E nos enviam mensagens
E aguardam respostas

Sob a aragem da noite
A lua desceu até a água
E ouvimos canções em outras línguas.

Enquanto o coração acolhia o outro
O infinito me pareceu acessível
No vazio do pensamento.

Adão Lima de Souza
Do Livro: A Vela na Demasia de Vento.


sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Poema de uma só face


Diante de mim, no espelho,
Essa imagem irreconhecível.
Retrato incompreensível da vida
Que o imperativo tempo limitou ser.

Como sopros do acaso,
Um vestígio de curiosidade
Na vastidão de esquecimento
Denotando o estar sem ser
Na confluência dos desejos
Estanques na resistência à entrega
Ao abismo convidativo... o infinito!

À probabilidade adormecida,
Ante a urgência do dia interminável
Converge a pouca pressa em sonhar
Enquanto a noite transcorre tranquila.

Diante dos desejos,
O temor e a procura descabida por realidade
Fazem de mim um só
Dentre incontáveis possibilidades.

Adão Lima de Souza

Do Livro: A Vela na Demasia de Vento.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

O homem II


O homem suporta sobre os ombros seu cadáver.
Acompanha-o ao trabalho, ao cinema,
Às orgias noturnas.
Corpo e mente, impregnam-se do cadáver putrefato.

O homem cheira mal
Pensa mal, mal sorrir!
Então, uma e outra se entrelaçam
E se fundem em amor.
Porém, que pode mais amar o homem
Se há pouco para se compreender?

Adão Lima de Souza
Do Livro: A Vela na Demasia de Vento.


domingo, 6 de julho de 2014

RAMONES: Punk Rock na veia


Ramones foi uma banda norte-americana de punk rock formada em Forest Hills, no distrito de Queens, Nova York, no ano de 1974. Considerada como precursora do estilo e uma das bandas mais influentes e importantes da história do rock. 

No início dos anos 1970 surgiam diversas vertentes do rock nos Estados Unidos e no Reino Unido; o punk rock foi uma delas, sendo os Ramones seus pioneiros e líderes, que consolidaram a base deste estilo musical, com composições simples, minimalistas e repetitivas.

Seu som se caracteriza por ser rápido e direto com influências do Rockabilly dos anos de 1950, do surf rock, The Velvet Underground, as bandas de garotas dos 60 como the Shangri-las e Garage proto punk de MC5 além de The Stooges.

Em 30 de março de 1974 os Ramones tocaram pela primeira vez, como um trio (Joey, Dee Dee e Johnny). Em 16 de abril do mesmo ano, a banda realizou sua primeira apresentação no bar CBGB, que se tornava o refúgio do rock underground nova-iorquino da época.

Ao longo de seus 22 anos de existência, os Ramones totalizaram 2.263 apresentações ao redor do mundo. O último show foi realizado em Los Angeles, Califórnia, em 6 de agosto de 1996.

Em 2 de março de 2002 a banda foi incluída no Salão da Fama do Rock and Roll, em 2004 a revista Rolling Stone elegeu as cem maiores personalidades dos primeiros cinquenta anos do rock, ficando os Ramones em 26º lugar e em 2011 a banda recebeu o prêmio Grammy Lifetime Achievement Award, que premia o artista por toda a sua obra.

Por: Adão Lima de Souza


quinta-feira, 3 de julho de 2014

E APOIS! - A IMPRENSA E O PT: O Governo dos Nove Malditos.

OS “ELES” QUEREM NOS FAZER CRER que só porque militam numa agremiação que tem como legenda a pretensa defesa dos trabalhadores deveriam ser imunes a qualquer tipo de crítica de quem não comunga com seu jeito peculiar e nocivo de administrar o país. É o caso do Partido dos Trabalhadores que desde o governo Lula, em que pese figurar tanto ou mais nas páginas policiais quanto nos cadernos políticos e de economia, oportunamente tenta emplacar projetos de lei que visam amordaçar a imprensa sob a falsa alegação de tornar democráticos os meios de comunicação brasileiros.

Recentemente, o vice-presidente do PT publicou artigo em que elege figuras frequentes na grande mídia brasileira como os “nove malditos”, arautos do conservadorismo político e propagadores do ódio contra o povo, devido à discordância manifesta desses colunistas com programas oficiais de “distribuição de renda” que, em que pese o benefício inegável que traz aos filhos de trabalhadores e pessoas afortunadas, não consegue disfarçar seu cunho assistencialista e eleitoreiro por ratificar o discurso secular da direita reacionária de que a camada mais carente do povo brasileiro sempre viverá de favor político em troca de continuar votando em seus “pais generosos”: Pai dos Pobres, Mãe do PAC, Rei do Futebol, o melhor presidente nunca visto antes na história do Brasil e outras balelas imprestáveis.

Diante disso, ouvir de uma pessoa leiga: “Se o PT acusa a velha Imprensa, historicamente fascista, de diuturnamente atentar contra a grande conquista do povo brasileiro que seria a chegada ao poder da “Esquerda Progressista”, mas na primeira oportunidade de ciar um veículo verdadeiramente público de comunicação como a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), nomeia para o Conselho Curador representantes da TV Globo e de suas a(fi)liadas, ou ainda, da Carta Capital, porta-voz não-oficial do governo, então já que nunca foi interesse desta esquerda criar uma imprensa pública de fato, será que só são nove mesmo os malditos da imprensa?”. Os postilhões da verdade e outras pessoas letradas a serviço dos “Eles” dirão que o direito à livre manifestação existe, se e somente se, não frustrar o interesse daqueles que melhor engana a população, em atendimento ao princípio da primariedade.

E quanto ao trabalhador permanentemente alimentado da verdade criada pelos organismos de imprensa financiados pela volumosa quantia de dinheiro público em propagandas de total desinteresse da população, porém protegida por uma lei dúbia e vacilante, entenderá algum dia que, assim como na guerra, no discurso político-partidário a primeira vítima é sempre a verdade? E que quando se diz que todos são iguais nos projetos do governo, quer-se, todavia, ao mesmo tempo, reafirmar que ao trabalhador caberá unicamente pagar a conta, porque esse gesto é sua maior manifestação de patriotismo?

Por essas e outras, enquanto as mesmas forças fingem se digladiar pelo poder, sob a pretensa inclinação pelos mais pobres, nomeando jornalistas que devem ser amaldiçoados e beneficiando os setores da imprensa que ovacionam o governo, “Os Eles”, regalam-se na impunidade sobre o pretexto de preservação da liberdade de expressão, desde que contida. E, aturdido entre quem da imprensa fascista é de fato inimigo, se a que critica a ação governamental mesmo ganhando R$ 2 bilhões por ano em contratos com o governo, ou aquela que pactuando do montante cumpre seu papel de defendê-lo, e do mesmo modo demonstra o profundo desprezo que nutrem pelo povo.

Então, já que  é comum partidos como o PT e outros ditos de esquerda afirmarem sempre que onde estiver um trabalhador oprimido, lá estarão para salvá-lo, não seria descabido nem arrogante perguntar quem estará lá para salvar este oprimido do PT e seus partidos apaniguados?. EU É QUE NÃO ACREDITO MAIS NOS “ELES”.


Por: Adão Lima de Souza

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Pluripartidarismo ou Partido Único?


Com o fim da temporada de Convenções Partidárias, o resultado é um emaranhamento político difícil de ser digerido pelo eleitor brasileiro, pois as coligações desenhadas se afiguram incompreensíveis até mesmo para os mais experientes analistas.

As mais esdrúxulas alianças foram pactuadas entre partidos concorrentes das duas esferas de poder em jogo. O PSB, que se apresenta como alternativa a PT e PSDB, apoia o PT no Rio e o PSDB em São Paulo, mantem candidato próprio em Minas, apoiado apenas por parte do partido, enquanto que a outra, sob o comando de Marina Silva da Rede optou por não se misturar aos políticos do Pacto Mofado combatido por Eduardo Campos.

O PT de Dilma, que aconchega em seu raio de importância e influência Collor, Maluf e Sarney, representantes legítimos da Política Velha, ataca a oposição por representar o passado indesejável pelos brasileiros, enquanto se alinha ao DEM entorno da candidatura do filho de Jader Barbalho no Pará.
A tucanada do PSDB ao mesmo tempo em que critica o PT pelo fisiologismo, acusando o Lula, padrinho sacrossanto do Partido dos Trabalhadores, cujo governo – dito para o povo e pelo povo – conseguira colocar no topo da lista dos bilionários da revista Forbes o empresário Eike Batista, à custa de subvenções e regalias do erário público e, recentemente, o dono da Faculdade Maurício de Nassau, José Janguiê Bezerra Diniz, confirmando a tese de que educação sempre foi um bom negócio, vale-se da mesma estratégia para arregimentar partidos insatisfeitos com o governo e promover a debandada da base situacionista.

O PMDB, fisiologista de carreira, como o bom Rasputin que sempre foi, caminhará ao lado de quem sinalizar com propostas mais vantajosas, vendendo a preço de ouro sua fidelidade ou infidelidade. O PP, aliado do PT desde o governo Lula, no Rio e no Rio Grande do Sul, em vez de Dilma preferem seguir com Aécio, assegurando importância qualquer que seja o resultado da eleição presidencial.

Nos Estados, onde maior é a confusão, verificam-se coligações ainda mais estranhas. Pernambuco, por exemplo, tanto prefeitos do PSB apoiam o candidato do PTB, quanto os deste declaram apoio incondicional ao adversário PSB, num oportunismo que se repete em todas as unidades da federação.

Isto posto, o mais próximo da verdade é dito pelo jornal comunista A Nova Democracia, ao denominar PT-PSDB-PMDB-PSB-PTB-DEM-PV-PCdoB-PP-PSD de partido único, o “PARTIDÂO”. Pois, se pudéssemos parodiar o poema quadrilha de Drummond de Andrade seria algo monstruoso mais ou menos assim: “Marina e Eduardo amavam Lula e Dilma que amam o Valdemar Costa Neto, Maluf, Collor, Sarney, Kassab, Renan que amavam FHC que amava Aécio que amava o Lula, a quem todos amam, mas que só ama a si mesmo”. De modo que o único odiado é o povo.

Por: Adão Lima de Souza


domingo, 29 de junho de 2014

THE DOORS


The Doors foi uma banda de rock psicodélico norte-americana formada em 1965 em Los Angeles, na Califórnia. O grupo era composto por Jim Morrison, Ray Manzarek, Robby Krieger e John Densmore.

sábado, 28 de junho de 2014

Escritos Anarquistas: A Igreja e o Estado


É óbvio que a liberdade não será restituída à humanidade, e que os verdadeiros interesses da sociedade – quaisquer que sejam os grupos, organizações sociais ou indivíduos que a compõem – só serão satisfeitos quando os Estados não mais existirem. Está claro que todos os chamados interesses gerais que o Estado deveria representar são de fato uma abstração, uma ficção, uma mentira. Estes interesses, na realidade, não são nada mais que a negação total e contínua dos interesses reais das regiões, comunas, associações e da grande maioria dos indivíduos submetidos ao Estado. 

O Estado é um enorme matadouro, um vasto cemitério no qual, sob a sombra e o pretexto de abstração, todas as reais aspirações e forças ativas de um país deixaram-se enterrar generosa e pacificamente.
Já que nenhuma abstração existe por si ou para si mesma, já que não tem pernas para andar, nem braços para criar, nem estômago para digerir as milhares de vítimas que lhe são dadas para que devore, torna-se óbvio que essa abstração religiosa e celestial, o próprio deus, representa na verdade os interesses muito positivos e reais de uma casta privilegiada, o clero.

Da mesma forma que seu complemento terreno, a abstração política, que é o Estado, representa os interesses não menos reais e positivos da classe que é hoje o principal – se não o único – agente da exploração e que, além disso, ainda demonstra uma certa tendência para absorver todas as outras classes: a burguesia. E assim como o clero sempre estava dividido e hoje tende a dividir-se ainda mais entre uma minoria rica e poderosa e uma maioria empobrecida que lhe é subordinada; assim também a burguesia e suas várias organizações – tanto sociais quanto políticas, na indústria, agricultura, bancos e comércio, bem como em todas as funções administrativas, financeiras, judiciárias, acadêmicas, policiais e militares do Estado – tendem a tornar-se uma verdadeira oligarquia. Transformar-se-ão em enorme massa de indivíduos pretensiosos e decadentes, vivendo numa ilusão perpétua, empurrados inevitavelmente e cada vez mais para o proletariado pela força irresistível da situação econômica atual e reduzidos a servir como instrumentos cegos dessa toda-poderosa oligarquia.

A abolição da Igreja e do Estado deve ser a primeira e indispensável condição para a verdadeira libertação da sociedade; só depois que isso acontecer é que a sociedade poderá ser organizada de uma maneira diferente. Não de cima para baixo e segundo algum plano ideal sonhado por alguns sábios e eruditos, e menos ainda por decretos emanados de algum poder ditatorial, ou ainda por uma assembleia nacional eleita por sufrágio universal. Como já demonstrei, um tal sistema levaria inevitavelmente à criação de um novo estado e, consequentemente, à formação de uma aristocracia oficial, isto é, uma classe de indivíduos que não teriam nada em comum com o povo e que começariam imediatamente a explorar e subjugar esse povo em nome do bem estar geral ou para salvar o Estado.

A futura organização da sociedade deveria ser realizada de baixo para cima, pela livre associação e união dos operários; primeiro em associações, depois em comunas, em regiões, em países e, finalmente, numa grande federação internacional e universal. Só assim poderá ser estabelecida a liberdade e a facilidade geral da nova ordem, uma ordem que, longe de querer negar, garante e tenta harmonizar os interesses dos indivíduos e da sociedade.

Algumas pessoas acreditam ser impossível obter essa harmonia entre os interesses dos indivíduos e os interesses da sociedade como um todo, pois tais interesses são contraditórios, jamais alcançando um equilíbrio ou até mesmo chegando a um mínimo entendimento mútuo. A tais objeções respondo que, se até agora esses interesses jamais foram comuns, a culpa cabe ao Estado, que sempre sacrificou os interesses da maioria em benefício de uma minoria privilegiada. Aquela famosa incompatibilidade, aquele conflito entre os interesses pessoais e os da sociedade não são mais do que um artifício e uma mentira política nascidos de uma mentira teológica, que inventou a doutrina do pecado original para degredar o homem e destruir sua consciência íntima de seu próprio valor. Esta falsa idéia do antagonismo de interesses também foi disseminada pelas ilusões da metafísica que, como se sabe, é parente próxima a teologia.

Por não compreender a sociabilidade da natureza humana, os metafísicos consideravam a sociedade um agregado mecânico e artificial de indivíduos. Este agregado seria formado abruptamente sob a bênção de algum tratado formal ou secreto, feito livremente ou influenciado por algum poder superior. Antes de entrar para a sociedade, estes indivíduos, dotados de uma alma imortal, gozariam de liberdade total.

Os metafísicos, sobretudo os que creem na imortalidade da alma, afirmam que, fora da sociedade, os homens podem unir-se em sociedade apenas ao custo de sua liberdade, sua independência natural e do sacrifício de sues interesses. Tal renúncia, tal sacrifício deve, portanto, ser mais imperativo quanto a sociedade for populosa e sua organização mais complexa. Em tal caso, o Estado é a expressão de todos os sacrifícios individuais. 

Por existir de forma tão abstrata e ao mesmo tempo violenta, o Estado continua cada vez mais a impedir a liberdade individual em nome da mentira chamada “bem comum”, que obviamente representa os exclusivos interesses da classe dominante. Desta forma, o Estado se mostra como uma negação inevitável, uma aniquilação de toda a liberdade, de todos os interesses individuais e gerais. Todos os sistemas metafísicos teológicos estão unidos de tal forma que são mutuamente explanatórios. Esta é a razão porque os defensores destes sistemas podem e devem continuar a explorar as massas em nome da Igreja e do Estado. Enchendo seus bolsos e satisfazendo sua luxúria imunda, eles, ao mesmo tempo, podem consolar-se com a ideia de que estão trabalhando para a glória de deus, pela vitória da civilização e pela causa do proletariado.
Mas nós, que não acreditamos em deus, na imortalidade da alma, nem no livre arbítrio individual, afirmamos que a liberdade deve ser entendida no seu senso mais amplo e profundo como o destino do progresso histórico do homem. Por um contraste estranho mas lógico, nossos adversários, teólogos idealistas e os metafísicos, tomam o princípio da liberdade como o fundamento e a base de suas teorias e chegam facilmente à indispensabilidade da escravidão humana. 

Nós, que somos teoricamente materialistas, tendemos na prática a criar e fazer durar um idealismo nobre e racional. Nossos inimigos, os idealistas divinos e transcendentais, na prática caem num materialismo vil e sangrento. Praticam-no em nome da mesma lógica, de acordo com a qual, todo progresso é a negação do princípio básico.

Estamos convencidos de que toda riqueza do progresso intelectual humano, moral e material, assim como a aparente independência do homem, é produto da vida em sociedade. Fora da sociedade, o homem não seria livre, e nem mesmo se tornaria um homem verdadeiro, isto é, um ser autoconsciente que sente, pensa e fala. Apenas a combinação da inteligência com o trabalho coletivo pode tirar o homem do estágio selvagem e animalesco que constitui sua primeira natureza, ou melhor, seu primeiro passo em direção ao progresso. Estamos seriamente convencidos de que a verdade de toda a vida humana, isto é, interesses, tendências, necessidades, ilusões e mesmo estupidez, assim como os atos de violência e de injustiça, toda ação que parece ser voluntária é apenas uma consequência das forças fatais na vida em sociedade.

Não se pode admitir a idéia da independência mútua sem negar a influência recíproca da correlação de manifestações de natureza externa. Na própria natureza, aquela maravilhosa correlação e filiação do fenômeno não podem ser obtidas sem conflito. Ao contrário, a harmonia das forças naturais parece ser obtida sem conflito. Ao contrário, a harmonia das forças naturais parece ser o único resultado do conflito, que é a condição da vida e do movimento. Na natureza e na sociedade, a ordem sem conflito é mortal.
Se a ordem é natural e possível no universo, é porque o universo não é governado por nenhum sistema criado anteriormente e imposto por um poder supremo. A hipótese teológica de uma legislação suprema leva a um absurdo evidente, e à negação da ordem e da própria natureza. As leis naturais são reais apenas enquanto forem inerentes à natureza, isto é, enquanto não são fixadas por uma autoridade.

Estas leis são somente simples manifestações, ou modalidades descontínuas do desenvolvimento das coisas e a combinação de fatos variados, transitórios, porém reais. Juntos constituem o que denominamos “natureza”. A inteligência humana e a ciência observaram estes fatos e os controlaram experimentalmente. Estão reuniram-nos num sistema e os denominaram leis. Mas a própria natureza não tem leis. Ela age inconscientemente, representando em si própria a infinita variedade dos fenômenos, que surgem e se repetem de acordo com a necessidade. Graças a esta inevitabilidade de ação que a ordem universal pode existir e de fato existe.

Tal ordem também surgiu na sociedade humana, que parece evoluir de uma forma dita antinatural, mas na realidade, ela se submete à marcha natural e variável dos fatos. Foi apenas a superioridade do homem sobre os outros animais que trouxe à sua evolução um elemento especial. Este elemento é totalmente natural, no sentido de que tal como tudo que existe, o homem é produto natural da união e interação das forças. O elemento especial é o poder de raciocínio ou a facilidade de generalização e abstração, graças à qual o homem se projeta por meio do pensamento, se examina e se observa como um alienígena, como um objeto externo. Elevando-se sobre si mesmo e por meio de ideias, e, desta forma, elevando-se sobre o mundo circundante, ele chega à representação da abstração perfeita, que é o nada absoluto. Este limite final da maior abstração do pensamento, este nada absoluto é deus.

Este é o significado e a base histórica de todo dogma teológico. Não compreendendo a natureza nem as causas materiais de seus próprios pensamentos, não percebendo as leis naturais que lhes são próprias, os primeiros homens na sociedade não podiam saber que seus conceitos de absoluto eram apenas resultados da faculdade de conceber ideias abstratas. Esta é a razão porque eles consideravam estas ideias, tiradas da natureza, objetos reais diante dos quais a própria natureza deixou de ter significado. Então começaram a adorar suas próprias ficções, suas noções impossíveis do absoluto e a honrá-las. Mas era necessário, de uma forma ou de outra, incorporar e tornar palpável a ideia abstrata do nada – ou deus. Com este objetivo, exaltavam a ideia de divindade e dotavam-na de todas as qualidades e poderes, tanto bons quanto maus, que encontravam apenas na natureza e na sociedade.

Esta foi a origem e a evolução histórica de todas as religiões, do fetichismo ao cristianismo. Não temos a intenção de investigar a história dos absurdos religiosos, teológicos ou metafísicos, e ainda menos de decidir o desenvolvimento das encarnações divinas e visões criadas por séculos de barbarismo. Todos sabem que a superstição sempre deu lugar a assustadores azares que terminavam em torrentes de sangue e lágrimas. Nos contentaremos em dizer que todas estas repulsivas aberrações da pobre humanidade foram circunstâncias históricas inevitáveis no crescimento normal e na evolução do organismo social. Tais observações, dominando a imaginação humana, geraram na sociedade a noção fatal de que o universo é governado por um poder e uma vontade sobrenaturais. Século após século, a sociedade acostumou-se tanto a esta ideia que acabou matando todas as inclinações em direção ao progresso e toda a capacidade de atingi-lo.

A ambição, inicialmente de alguns indivíduos e depois de classes sociais inteiras, fez surgir a escravidão e a conquista dos princípios vitais, e semeou profundamente a idéia da divindade. Desde aí, toda sociedade se tornou impossível sem ter, como fundamento, as instituições da Igreja e do Estado. Estes dois flagelos sociais ainda são defendidos por todos os dogmáticos. Mal haviam surgido estas instituições, quando duas castas foram organizadas imediatamente: a dos padres e a dos aristocratas que, sem perda de tempo, implantaram profundamente nos escravos a indispensabilidade, a utilidade e a santidade da Igreja e do Estado. Tudo isto teve por objetivo transformar a escravidão brutal em uma escravidão assegurada e legal, consagrada pela vontade do Ser Supremo.

Mas os padres e os aristocratas acreditavam sinceramente nestas instituições que eles mantinham com todo o seu poder e em função do próprio interesse? Eram apenas mentirosos e farsantes? Não, acredito que eram ao mesmo tempo crentes e impostores... Mas assim, como podemos reconciliar dois papéis aparentemente incompatíveis: crédulo e enganador, mentiroso e crente? Logicamente parece difícil, mas de fato, na vida diária, estas qualidades estão frequentemente associadas.

A grande maioria das pessoas vive em contradição consigo mesma e sob contínuos mal entendidos. Geralmente, não se dão conta disto até que algum fato extraordinário os tire do seu sonambulismo habitual e os force a olhar para si e ao redor. Na política, como na religião, os homens são apenas máquinas nas mãos dos exploradores. Mas assaltantes e assaltados, opressores e oprimidos vivem lado a lado, governados por um punhado de indivíduos que devem ser considerados como verdadeiros exploradores. São sempre o mesmo tipo de gente, livre de todos os preconceitos políticos e religiosos, que maltratam e oprimem quase como uma questão de consciência. Nos séculos XVII e XVIII até a Grande Revolução, assim como hoje, eles comandaram a Europa e tudo funcionou como eles queriam. Cremos que sua dominação não pode mais continuar.

Enquanto estes líderes iludem e enganam o povo deliberadamente, seus servos, os instrumentos da Igreja e do Estado, zelosamente dedicam-se a manter a santidade e a integridade destas terríveis instituições. Se a Igreja é necessária para a salvação da alma, como afirmam os padres e a maioria dos estadistas, o Estado é, por sua vez, necessário para a conservação da paz, ordem e justiça. Proclamam os dogmáticos de todas as classes: “Sem a Igreja e o Estado, não haveria civilização nem progresso”. Não há necessidade de discutir o problema da salvação eterna já que não acreditamos na imortalidade da alma. Estamos convencidos de que o pior mal, tanto para a humanidade quanto para a verdade e o progresso, é a Igreja.

Poderia ser de outra forma? Pois não cabe à Igreja a tarefa de perverter as gerações mais novas e especialmente as mulheres? Não é ela que, através de seus dogmas, suas mentiras, sua estupidez e sua ignomínia tenta destruir o pensamento lógico e a ciência? Não é ela que ameaça a dignidade do homem, pervertendo suas ideias sobre o que é bom e o que é justo? Não é ela que transforma os vivos em cadáveres, despreza a liberdade e prega a eterna escravidão das massas em benefício dos tiranos e dos exploradores? Não é essa mesma Igreja implacável que procura perpetuar o reino das sombras, da ignorância, da pobreza e do crime?

Se não quisermos que o progresso seja, em nosso século, um sonho mentiroso, devemos acabar com a Igreja.

Por: Mikhail Bakunin