Ao final de sua obra Dom Casmurro, o grande escritor Machado de Assis, mestre na arte de ironizar os trejeitos inautênticos da burguesia insípida que era a sociedade brasileira de seu tempo, disse: “ Agora vamos à história dos subúrbios”. Mas, não
foi.
Essa árdua tarefa coube a Lima Barreto. Não que o Bruxo do Cosme Velho fosse desprovido das condições para descrever os tipos peculiares que perambulavam pelos embriões do que seriam as atuais favelas. Não o era.
Machado de Assis sempre foi um observador perspicaz do ser humano e do inter-relacionamento deste nos agrupamentos sociais. Pois era um mestre na análise e compreensão das periferias do capitalismo. Acontece que competia ao Lima Barreto trazer à superfície esses personagens subterrâneos, consequência da nova sociedade que se moldava no Brasil do início do século XX.
Por
isso, sua obra passeia pelos os tempos da República Velha, pela formação do Brasil
que nela se consolidou, dando voz ao deserdado da sorte. Nela podemos ver
as agruras daqueles pertencentes às classes sociais inferiores e os efeitos
psicológicos decorrentes do correlato jogo dos papéis impostos pelo status
atribuído.
Como
ilustração disso, tem-se, de um lado, a visível submissão das elites em relação
à Europa pela suposta superioridade, pela raça, pelo nível civilizatório; e do
outro, o povo frente às elites econômicas e políticas, considerado por estas como
escravos, dependentes, agregados, protegidos, afilhados, serviçais, jagunços e
colonos.
No
alvorecer desses acontecimentos estava Lima Barreto, com a perspicácia dos grandes
sociólogos, mas descrente do determinismo científico tão bem aceito por nomes
como Durkheim e outros expoentes à altura deste. Isto porque nunca foi um
“pequeno burguês”, segundo expressão cunhada pelo ativismo Marxista, pois
jamais se limitou a uma visão de mundo acomodada à ideologia das classes
superiores.
Lima
Barreto foi um rebelde solitário que usou a literatura para denunciar a
sociedade em que lhe coube viver. Um ativista inconformado na luta contra as
desigualdades e a submissão das classes inferiores, um defensor dos deserdados.
O grande escritor brasileiro. Pois escreve com a alma na ponta da sua pena. Nunca
foge da vida. Ao contrário, mergulha nela até as zonas abissais, a fim de
trazer à tona a culpa de todos pelas disparidades existentes. A culpa do acaso
pelas misérias de tantos; a culpa dos deuses e dos homens pelo tormento de
tantos inocentes.
Lima
Barreto conviveu com o vício e a loucura, sem, contudo, deixar de manter-se
sóbrio para denunciar a “loucura da lucidez”. Nesse jogo dos acasos
irracionais, sua literatura era o resultado do ”ajuste do eu aos
imperativos do acaso”. Acasos de todos os tipos: genéticos, sociais,
circunstanciais...
Acasos
que fizeram de um “João ninguém” um grande escritor de percepções de
verdades. Uma espécie de profeta, assim como Machado de Assis, do encontro que
algum dia todo homem há de ter consigo.
“Há
duas engrenagens que não se ajustam. A da sociedade e a do artista. Na
dialética de seus conflitos dissolvem-se as ambições em rotinas grosseiras,
perdem-se os sonhos em sua própria irrelevância. Lima Barreto é a explosão
deste desajuste, num grito que a sociedade não quer ouvir. E por isto o sufoca.
Machado, por outro lado, é a expressão de um silêncio obliquo que se esconde na
ironia e por isto a sociedade o aceita. Os dois são grandes. Creio ser um deles
maior que o outro, pela coragem frontal da denúncia perigosa”.
“A
coragem frontal da denúncia perigosa” a voz dos deserdados, a alma do subúrbio
antigo, “a expressão da miséria moral que soterra a esperança dos simples e a
reduz a uma resignação que se define como suicídio existencial”.
Sua força
em denunciar as mazelas sociais de seu tempo, através de sua literatura,
propositadamente, sem rebuscamentos, sem floreios desnecessários, sem pieguices,
sem a capa protetora do Parnasianismo, fez de Lima Barreto exemplo de luta pela
emancipação de toda sorte de deserdados da República que os confinara nas
masmorras inescapáveis da miséria humana.
Por
tudo isso, é perfeitamente possível, e plausível, encontrar traços de simetria
entre Lima Barreto e pensadores que transcendem a própria condição social para combater
as misérias do mundo. Assim, como o fez Karl Marx, que viveu sua
vida e sacrificou sua família para denunciar injustiças e encontrar logicamente
as suas causas, assimilando a posição de classe do operariado, em meio às
forças que se desdobram nas relações sociais como a dialética do poder, o problema
do Estado, da burocracia; a situação da mulher e a literatura possível numa
sociedade que padece de alienação estrutural.
Destarte,
Lima Barreto se insere entre os pensadores libertários, cuja audácia plantou
nestas terras tupiniquins a semente da coragem para se posicionar contra os grilhões,
as injustiças, os atavismos de uma sociedade que até os dias atuais se furta,
pelos métodos mesquinhos e covardes, ao confronto consigo, negando a única maneira
de se desvelar e se compreender enquanto território possível de emancipação.
Lima
Barreto era, enfim, um filósofo da contra-opressão.
Por:
Adão Lima de Souza
Lima Barreto é ainda o escritor que o Brasil necessita.
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