Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge confirma
mais uma vez como os blockbusters de Hollywood são indicadores precisos da
situação ideológica da nossa sociedade. A narrativa (resumida) se dá da
seguinte maneira. Oito anos depois dos eventos de Batman – O Cavaleiro
das Trevas, capítulo anterior da saga Batman, a lei e a ordem
prevalecem em Gotham City: sob os extraordinários poderes do Ato Dent, o
comissário Gordon praticamente erradicou o crime violento e organizado. No
entanto, ele se sente culpado pela cobertura dos crimes de Harvey Dent (Dent
morreu ao tentar matar o filho de Gordon, salvo por Batman, que assumiu a culpa
em nome da manutenção do mito de Dent, levando a uma demonização de Batman como
vilão de Gotham) e planeja admitir a conspiração em um evento público de
celebração a Dent, mas acaba concluindo que a cidade não está preparada para a
verdade. Bruce Wayne, que não atua mais como Batman, vive isolado na própria
Mansão enquanto sua empresa desmorona depois de ter investido em um projeto de
energia limpa criado para aproveitar a energia nuclear, mas encerrado quando
ele descobriu que o núcleo poderia ser transformado em uma bomba. A lindíssima
Miranda Tate, membra do conselho administrativo da Wayne Enterprises, convence
Wayne a refazer a sociedade e continuar com seus trabalhos filantrópicos.
Aqui entra o (primeiro) vilão do filme: Bane, líder
terrorista e antigo membro da Liga das Sombras, consegue a cópia do discurso de
Gordon. Depois que as tramas financeiras de Bane quase levam a empresa de Wayne
à falência, Wayne confia a Miranda a tarefa de controlar seus negócios, além de
ter com ela um breve caso amoroso. (Nesse aspecto ela compete com a gata-ladra
Selina Kyle, que rouba dos ricos para redistribuir a riqueza, mas acaba se
juntando a Wayne e às forças da lei e da ordem.) Ao descobrir a movimentação de
Bane, Wayne retorna como Batman e confronta Bane, que afirma ter assumido a Liga
das Sombras após a morte de Ra’s Al Ghul. Depois de deixar Batman gravemente
ferido em um combate corpo a corpo, Bane o coloca numa prisão de onde é
praticamente impossível fugir. Seus companheiros de prisão contam para Wayne a
história da única pessoa que conseguiu escapar: uma criança motivada pela
necessidade e pela mera força de vontade. Enquanto o prisioneiro Wayne se
recupera dos ferimentos e se prepara para ser Batman de novo, Bane consegue
transformar Gotham City em uma cidade-Estado isolada. Primeiro ele atrai para o
subsolo a maior parte dos policiais de Gotham e os prende lá; depois provoca
explosões que destroem a maioria das pontes que conectavam Gotham City ao
continente, anunciando que qualquer tentativa de deixar a cidade resultaria na
detonação do núcleo de Wayne, do qual se apoderou e transformou em uma bomba.
Chegamos então ao momento crucial do filme: a tomada de
poder por parte de Bane acontece junto com uma vasta ofensiva
político-ideológica. Bane revela publicamente o acobertamento da morte de Dent
e liberta os prisioneiros detidos pelo Ato Dent. Condenando os ricos e
poderosos, ele promete devolver o poder ao povo, convocando as pessoas comuns a
“tomarem a cidade de volta” – Bane revela-se como “o manifestante definitivo do
Occupy Wall Street, convocando os 99% a se juntarem para derrubar as elites
sociais”[1]. Segue-se então a ideia do filme de poder do povo: uma
sequência mostra uma série de julgamentos e execuções dos ricos, as ruas
tomadas pelo crime e pela vilania… alguns meses depois, enquanto Gotham City
continua sofrendo o terror popular, Wayne consegue fugir da prisão, retorna a
Gotham como Batman e convoca os amigos para ajudá-lo a libertar a cidade e
desarmar a bomba nuclear antes que ela exploda. Batman confronta e domina Bane,
mas Miranda intervém e apunhala Batman – a benfeitora social revela-se como
Talia al Ghul, filha de Ra’s: foi ela que escapou da prisão quando criança e
foi Bane que a ajudou a fugir. Depois de comunicar seu plano de terminar a
tarefa do pai de destruir Gotham, Talia foge. Na confusão que se segue, Gordon
destrói o dispositivo que permitia a detonação remota da bomba enquanto Selina
mata Bane, permitindo que Batman vá atrás de Talia. Ele tenta forçá-la a levar
a bomba para a câmara de fusão onde pode ser estabilizada, mas Talia inunda a
câmara. Talia morre quando seu caminhão bate, confiante de que a bomba não pode
ser detida. Usando um helicóptero especial, Batman transporta a bomba para além
dos limites da cidade, onde ela explode sobre o oceano e supostamente o mata.
Agora Batman é celebrado como um herói cujo sacrifício
salvou Gotham City, enquanto Wayne é tido como morto nos motins. Após seus bens
serem divididos, Alfred vê Bruce e Selina juntos em um café em Florença,
enquanto Blake, jovem policial honesto que conhecia a identidade de Batman,
herda a Batcaverna. Em suma, “Batman salva a situação, aparece incólume e
continua com uma vida normal, enquanto outro o substitui no papel de defender o
sistema”[2]. A primeira pista dos fundamentos ideológicos desse final é
dada por Gordon, que, no (suposto) enterro de Wayne, lê as últimas linhas
de Um conto de duas cidades, de Dickens: “Esta é, sem dúvida, a
melhor coisa que faço e que jamais fiz; este é, sem dúvida, o melhor descanso
que terei e que jamais tive”. Alguns críticos do filme interpretaram essa
citação como um indício de que o filme “atinge o nível mais nobre da arte ocidental.
O filme apela para o centro da tradição norte-americana – o ideal do nobre
sacrifício pelo povo comum. Batman deve se humilhar para ser exaltado e
renunciar à própria vida para encontrar uma nova. [...] Como máxima figura de
Cristo, Batman sacrifica a si para salvar os outros”[3].
Dessa perspectiva, com efeito, Dickens está apenas a um
passo de distância de Cristo no Calvário: “Pois aquele que quiser salvar a sua
vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai
encontrá-la. De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas
arruinar a sua vida?” (Mt 16:25-26 daBíblia de Jerusalém). O sacrifício
de Batman como repetição da morte de Cristo? Essa ideia não seria comprometida
pela última cena do filme (Wayne com Selina em um café em Florença)? O
equivalente religioso desse final não seria a conhecida ideia blasfema de que
Cristo realmente sobreviveu à crucificação e teve uma vida longa e pacífica (na
Índia, ou talvez no Tibete, de acordo com algumas fontes)? A única maneira de
remir essa cena final seria interpretá-la como um devaneio (alucinação) de
Alfred, que se senta sozinho em um café em Florença. Outra característica
dickensiana do filme é a queixa despolitizada sobre a lacuna entre ricos e
pobres – no início do filme, Selina sussurra para Wayne enquanto eles dançam em
um baile exclusivo da elite: “Está vindo uma tempestade, sr. Wayne. É melhor
que estejam preparados. Pois quando ela chegar, todos se perguntarão como
acharam que poderiam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto”. Nolan,
como todo bom liberal, está “preocupado” com essa disparidade e reconhece que
essa preocupação impregnou o filme:
O que vejo do filme relacionado ao mundo real é a ideia
de desonestidade. O filme inteiro trata da chegada do seu ponto crítico. [...]
A ideia de justiça econômica perpassa o filme, e por duas razões. Primeiro,
Bruce Wayne é um bilionário. Isso tem de ser levado em conta. [...] E segundo,
há muitas coisas na vida, e a economia é uma delas, em que precisamos confiar
em grande parte do que nos dizem, pois a maioria de nós se sente desprovida das
ferramentas analíticas para saber o que está acontecendo. [...] Não acho que
existe uma perspectiva de direita ou de esquerda no filme. Ele faz apenas uma
avaliação honesta, ou uma exploração honesta, do mundo em que vivemos – de
coisas que nos preocupam.[4]
Por mais que os espectadores saibam que Wayne é extremamente
rico, eles tendem a se esquecer de onde vem a riqueza dele: fabricação de armas
e especulação financeira, e é por isso que as jogadas de Bane na Bolsa de
Valores podem destruir seu império – traficante de armas e especulador, esse é
o verdadeiro segredo por trás da máscara do Batman. De que modo o filme lida
com isso? Ressuscitando o tema arquetípico dickensiano do bom capitalista que
se envolve no financiamento de orfanatos (Wayne) versus o mau e ganancioso
capitalista (Stryver, como em Dickens). Nessa moralização dickensiana
excessiva, a disparidade econômica é traduzida na “desonestidade” que deveria
ser “honestamente” analisada, embora não tenhamos nenhum mapeamento cognitivo
confiável, e uma abordagem “honesta” como essa nos leva a mais um paralelo com
Dickens – é como afirmou Jonathan (corroteirista), irmão de Christopher Nolan,
sem rodeios: “Para mim, Um conto de duas cidades foi o retrato
mais angustiante de uma civilização reconhecível e descritível que se
desintegrou completamente em pedaços. Com os terrores em Paris, na França
daquela época, não é difícil imaginar que as coisas dariam tão errado assim”[5]. As cenas do vingativo levante populista no filme (uma
multidão sedenta pelo sangue dos ricos que os ignoraram e exploraram) evocam a
descrição de Dickens do Reino do Terror, tanto que, embora não tenha nada a ver
com política, o filme segue o romance de Dickens ao retratar “honestamente” os
revolucionários como fanáticos possuídos, e assim fornece
a caricatura do que, na vida real, seriam revolucionários
comprometidos ideologicamente no combate da injustiça estrutural. Hollywood
conta o que oestablishment quer que saibamos – que os
revolucionários são criaturas brutais, sem nenhum respeito pela vida humana.
Apesar da retórica emancipatória sobre a libertação, eles têm projetos
sinistros por trás. Portanto, quaisquer que sejam as razões, elas precisam ser
eliminadas.[6]
Tom Charity destacou corretamente “a defesa que o filme faz
do establishmentna forma de bilionários filantrópicos e uma polícia
corrupta” – na sua desconfiança das pessoas que resolvem as coisas com as
próprias mãos, o filme “demonstra tanto o desejo por justiça social quanto o
medo do que realmente pode parecer nas mãos de uma multidão”[7]. Aqui, Karthick levanta uma questão bem clara sobre a imensa
popularidade da figura do Coringa no filme anterior: qual o motivo de uma
atitude tão hostil para com Bane quando o Coringa foi tratado com tanta
mansidão no filme anterior? A resposta é simples e convincente:
O Coringa, que clama por anarquia na sua mais pura
manifestação, enfatiza a hipocrisia da civilização burguesa como ela existe,
mas é impossível traduzir suas visões em uma ação de massa. Bane, por outro
lado, representa uma ameaça existencial ao sistema de opressão. [...] Sua força
não é apenas a psique, mas também sua capacidade de comandar as pessoas e
mobilizá-las rumo a um objetivo político. Ele representa a vanguarda, o
representante organizado dos oprimidos que promove a luta política em nome
deles para gerar mudanças sociais. Tamanha força, com o maior dos potenciais
subversivos, não tem lugar dentro do sistema. Ela precisa ser eliminada.[8]
No entanto, ainda que Bane não tenha o fascínio do Coringa
de Heath Ledger, há uma característica que o distingue desse último: o amor
incondicional, a mesma fonte da sua dureza. Em uma cena curta mas comovente,
vemos como, em um ato de amor no meio do sofrimento terrível, Bane salvou a
garota Talia sem se importar com as consequências e pagando um preço terrível
por isso (foi espancado quase até a morte por defendê-la). Karthick tem toda
razão ao situar esse acontecimento dentro da longa tradição, de Cristo a Che
Guevara, que exalta a violência como uma “obra do amor”, como nas famosas
palavras do diário de Che Guevara: “Devo dizer, correndo o risco de parecer
ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do
amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem essa qualidade”[9]. O que encontramos aqui nem é tanto a “cristificação de Che”,
mas sim uma “cheização do próprio Cristo” – o Cristo cujas palavras “escandalosas”
de Lucas (“se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher,
filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” [Lc
14:26]) apontam exatamente na mesma direção que a famosa citação de Che: “É
preciso ser duro, mas sem perder a ternura”. A afirmação de que “o verdadeiro
revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor” deveria ser interpretada
juntamente com a declaração muito mais “problemática” de Guevara sobre os
revolucionários como “máquinas de matar”:
O ódio é um elemento da luta; o ódio impiedoso do inimigo
que nos ergue acima e além das limitações naturais do homem e nos transforma em
eficazes, violentas, seletivas e frias máquinas de matar. Assim devem ser
nossos soldados; um povo sem ódio não derrota um inimigo brutal.
Ou, parafraseando Kant e Robespierre mais uma vez: o amor
sem crueldade é impotente; a crueldade sem amor é cega, paixão efêmera que
perde todo seu vigor. Guevara está parafraseando as declarações de Cristo sobre
a unidade do amor e da espada – em ambos os casos, o paradoxo subjacente
consiste nisto: o que torna o amor angelical, o que o eleva acima da mera
sentimentalidade instável e patética, é essa mesma crueldade, o seu elo com a
violência – é esse elo que eleva o amor acima e além das limitações naturais do
homem e o transforma em pulsão incondicional. É por isso que, voltando a O
Cavaleiro das Trevas Ressurge, o único amor autêntico no filme é o de Bane,
o “amor do terrorista”, em nítido contraste a Batman.
Nesse mesmo viés, a figura de Ra’s, pai de Talia, merece um
exame mais cuidadoso. Ra’s é uma mistura de características árabes e orientais,
um agente do virtuoso terror lutando para contrabalancear a corrompida
civilização ocidental. O personagem é interpretado por Liam Neeson, ator cuja
persona na tela geralmente irradia uma nobre bondade e sabedoria (ele faz o
papel de Zeus em Fúria de Titãs), e que também representa Qui-Gon
Jinn em A Ameaça Fantasma, primeiro episódio da série Star
Wars. Qui-Gon é um cavaleiro Jedi, mentor de Obi-Wan Kenobi, bem como o
descobridor de Anakin Skywalker, acreditando que Anakin é O Escolhido que
restituirá o equilíbrio do universo, ignorando os alertas de Yoda sobre a
natureza instável de Anakin; no final de A Ameaça Fantasma, Qui-Gon
é morto por Darth Maul[10].
Na trilogia Batman, Ra’s também é professor do
jovem Wayne: em Batman Begins, ele encontra Wayne em uma prisão
chinesa; apresentando-se como Henri Ducard, ele oferece um “caminho” para o
garoto. Depois que Wayne é libertado, ele segue até a fortaleza da Liga das
Sombras, onde Ra’s está esperando, embora se apresente como servo de outro
homem chamado Ra’s Al Ghul. Depois de um longo e doloroso treinamento, Ra’s
explica que Bruce deve fazer o que for preciso para combater o mal, embora
revele que eles treinaram Bruce para liderar a Liga com o intuito de destruir Gotham
City, que eles acreditam ter se tornado irremediavelmente corrupta. Portanto,
Ra’s não é a simples encarnação do Mal: ele representa a combinação de virtude
e terror, a disciplina igualitária que combate um império corrupto, e assim
pertence ao fio condutor (na ficção recente) que vai de Paul Atreides em Duna até
Leônidas em300 de Esparta. E é crucial que Wayne seja seu discípulo:
Wayne foi formado como Batman por ele.
Duas críticas do senso-comum se apresentam aqui. A primeira
é de que houveviolência e matanças monstruosas nas revoluções
reais, desde o estalinismo ao Khmer Vermelho, por isso está claro que o filme
não está apenas engajado na imaginação revolucionária. A segunda, oposta, é
esta: o atual movimento Occupy Wall Street não foi violento, seu objetivo
definitivamente não era um novo reino do terror; na medida em que se espera que
a revolta de Bane extrapole a tendência imanente do movimento OWS, o filme,
portanto, deturpa de maneira absurda seus objetivos e estratégias. Os atuais
protestos antiglobalistas são o exato oposto do terror brutal de Bane: este
representa a imagem espelhada do terror estatal, uma seita fundamentalista e
homicida dominada e controlada pelo terror, e não a sua superação por meio da
auto-organização popular… As duas críticas compartilham a rejeição da figura de
Bane. A resposta a essas duas críticas é múltipla.
Primeiro, devemos esclarecer o atual escopo da violência – a
melhor resposta para a afirmação de que a reação violenta da multidão à
opressão é pior que a opressão original foi dada por Mark Twain no seu Um
ianque na corte do rei Artur: “Houve dois ‘Reinos do Terror’, se bem nos
lembramos; um forjado na incandescente paixão, outro no desumano sangue frio.
[...] Mas todos os nossos temores, que os tenhamos pelo menor terror, o
momentâneo, por assim dizer; pois o que é o terror da morte súbita pelo machado
se comparado à morte em toda uma vida de fome, frio, insulto, crueldade e
desilusão? O cemitério de qualquer cidade pode bem conter os caixões cheios
desse breve terror, que todos aprendemos com afinco a temer e lamentar; mas a
França inteira mal conteria os caixões cheios daquele outro terror, mais antigo
e verdadeiro, o terror de amargura e atrocidade indizíveis, que nenhum de nós
aprendeu a encarar em toda sua amplitude ou desprezo que merece”.
Depois, deveríamos desmistificar o problema da violência,
rejeitando afirmações simplistas de que o comunismo do século XX agiu com uma
violência homicida excessiva demais, e de que deveríamos tomar cuidado para não
cair mais uma vez nessa armadilha. Com efeito, trata-se de uma terrível verdade
– mas esse foco voltado diretamente para a violência obscurece uma questão
basilar: o que houve de errado no projeto comunista do século XX como tal, qual
foi o ponto fraco imanente desse projeto que impulsionou o comunismo a recorrer
(não só) aos comunistas no poder para a violência irrestrita? Em outras
palavras, não basta dizer que os comunistas “negligenciaram o problema da
violência”: foi um aspecto sócio-político mais profundo que os impulsionou à
violência. (O mesmo se aplica à ideia de que os comunistas “negligenciaram a
democracia”: seu projeto geral de transformação social impôs sobre eles esse
“negligenciar”.) Portanto, não é apenas o filme de Nolan que foi incapaz de
imaginar o poder autêntico do povo – os próprios movimentos “reais” de
emancipação radical também não o fizeram e continuam presos nas coordenadas da
antiga sociedade, e, por essa razão, muitas vezes o efetivo “poder do povo” foi
esse horror violento.
E, por último, mas não menos importante, é muito simples
dizer que não há potencial violento no movimento OWS e similares – há
sim uma violência em jogo em todo processo emancipatório autêntico: o
problema com o filme é que ele traduziu essa violência de uma maneira errada em
terror homicida. Qual é, então, a sublime violência em relação à qual até mesmo
o mais brutal assassinato é um ato de fraqueza? Façamos uma digressão em Ensaio
sobre a lucidez, de José Saramago, que conta a história dos estranhos
eventos na capital sem nome de um país democrático não identificado. Quando a
manhã do dia das eleições é arruinada por chuvas torrenciais, a quantidade de
eleitores presentes é extremamente baixa, mas o tempo melhora no meio da tarde
e a população segue em massa para as seções eleitorais. No entanto, o alívio do
governo logo acaba quando a contagem de votos revela que 70% das cédulas na
capital foram deixados em branco. Frustrado por esse aparente lapso civil, o
governo dá aos cidadãos a chance de refazer o fato uma semana depois, em mais
um dia de eleição. O resultado é pior: agora 83% dos votos foram brancos. Os
dois principais partidos políticos – o governante partido da direita (p.d.d.) e
seu principal adversário, o partido do meio (p.d.m.) – entram em pânico,
enquanto o infeliz e marginalizado partido da esquerda (p.d.e.) apresenta uma
análise afirmando que os votos brancos são, essencialmente, um voto por sua
agenda progressiva. Sem saber como responder a um protesto benigno, mas certo
de que existe uma conspiração antidemocrática, o governo rapidamente rotula o
movimento de “terrorismo puro e duro” e declara estado de emergência,
permitindo a suspensão de todas as garantias constitucionais e adotando uma
série de medidas cada vez mais drásticas: os cidadãos são apanhados
aleatoriamente e desaparecem em interrogatórios secretos, a polícia e a sede do
governo saem da capital, proibindo a entrada e a saída da cidade e, por fim,
fabricando seu próprio líder terrorista. A cidade toda continua funcionando
quase normalmente, as pessoas se esquivam de todas as ofensivas do governo com
uma harmonia inexplicável e com um verdadeiro nível gandhiano de resistência
não violenta… isso, a abstenção dos eleitores, é um exemplo de
“violência divina” verdadeiramente radical que desperta reações de pânico
brutal nos detentores do poder.
Voltando a Nolan, a trilogia dos filmes do Batman, portanto,
segue uma lógica imanente. Em Batman Begins, o herói continua
dentro dos limites de uma ordem liberal: o sistema pode ser defendido com
métodos moralmente aceitáveis. O Cavaleiro das Trevas é de
fato uma nova versão de dois clássicos de faroeste de John Ford (Sangue de
Heróis e O Homem Que Matou o Facínora) que retratam como,
para civilizar o ocidente selvagem, é preciso “publicar a lenda” e ignorar a
verdade – em suma, como nossa civilização tem de se fundamentar em uma Mentira:
é preciso quebrar as regras para defender o sistema. Ou, dito de outra forma,
em Batman Begins, o herói é simplesmente uma figura clássica do
vigilante urbano que pune os criminosos naquilo que a polícia não pode; o
problema é que a polícia, órgão responsável pela imposição das leis,
relaciona-se de maneira ambígua à ajuda de Batman: enquanto admite sua
eficácia, ela também considera Batman uma ameaça ao seu monopólio do poder e
uma testemunha da sua ineficácia. No entanto, a transgressão de Batman aqui é
puramente formal, consiste em agir em nome da lei sem a legitimação para
fazê-lo: nos seus atos, ele nunca viola a lei. O Cavaleiro das Trevas muda
essas coordenadas: o verdadeiro rival de Batman não é o Coringa, seu oponente,
mas Harvey Dent, o “cavaleiro branco”, o novo e agressivo promotor público, um
tipo de vigilante oficial cuja batalha fanática contra o crime o conduz ao
assassinato de pessoas inocentes e o destrói. É como se Dent fosse a resposta à
ordem legal da ameaça de Batman: contra a vigilante luta de Batman, o sistema
gera seu próprio excesso ilegal, seu próprio vigilante, muito mais violento que
Batman, violando diretamente a lei. Desse modo, há uma justiça poética no fato
de que, quando Bruce planeja revelar ao público sua identidade como Batman,
Dent o interrompe e se apresenta como Batman – ele é“mais Batman
que o próprio Batman”, efetivando a tentação à qual Batman ainda era capaz de
resistir. Então quando, no final do filme, Batman assume os crimes cometidos
por Dent para salvar a reputação do herói popular que incorpora a esperança
para o povo comum, seu ato modesto tem uma ponta de verdade: Batman, de certa
forma, devolve o favor a Dent. Seu ato é um gesto de troca simbólica: primeiro
Dent toma para si a identidade de Batman, e depois Wayne – o Batman verdadeiro
– toma para si os crimes de Dent.
Por fim, O Cavaleiro das Trevas Ressurge ultrapassa
ainda mais os limites: Bane não seria Dent levado ao extremo, à sua
autonegação? Dent que chega à conclusão de que o sistema é injusto, de modo
que, para combater a injustiça com eficácia, é preciso atacar diretamente o
sistema e destruí-lo? E, como parte da mesma atitude, Dent que perde as últimas
inibições e está pronto para usar toda sua brutalidade assassina para atingir
esse objetivo? O advento dessa figura muda a constelação inteira: para todos os
participantes, inclusive Batman, a moralidade é relativizada, torna-se uma
questão de conveniência, algo determinado pelas circunstâncias: é uma guerra de
classes aberta, tudo é permitido para defender o sistema quando estamos lidando
não só com gângsteres malucos, mas com uma revolta popular.
Será, então, que isso é tudo? O filme deveria ser
categoricamente rejeitado por quem se envolve em lutas emancipatórias radicais?
As coisas são mais ambíguas, e é preciso interpretar o filme da maneira que se
interpreta um poema político chinês: as ausências e as presenças surpreendentes
também contam. Recordemos a antiga história francesa sobre uma esposa que
reclama do melhor amigo do marido, dizendo que o amigo tem se insinuado
sexualmente para ela: leva algum tempo para que o amigo surpreso entenda a
mensagem – de uma maneira invertida, ela o está incitando a seduzi-la… É como o
inconsciente freudiano que não conhece a negação: o que importa não é um juízo
negativo sobre algo, mas o simples fato de que esse algo seja mencionado –
em O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o poder do povo ESTÁ AQUI,
encenado como um Evento, em um passo fundamental dado a partir dos oponentes
habituais de Batman (criminosos megacapitalistas, gângsteres e terroristas).
Temos aqui a primeira pista – a perspectiva de que o
movimento OWS tome o poder e estabeleça a democracia do povo em Manhattan é
nítida e completamente tão absurda e irreal que não podemos deixar de fazer a
seguinte pergunta: POR QUE UM IMPORTANTE BLOCKBUSTER DE HOLLYWOOD SONHA COM
ISSO, POR QUE EVOCA ESSE ESPECTRO? Por que sequer sonhar com o OWS culminando
em uma violenta tomada de poder? A resposta óbvia (manchar o OWS com acusações
de que ele guarda um potencial terrorista totalitário) não é o bastante para
explicar a estranha atração exercida pela perspectiva do “poder do povo”. Não
admira que o funcionamento apropriado desse poder continue branco, ausente:
nenhum detalhe é dado sobre como funciona esse poder do povo, sobre o que as
pessoas mobilizadas estão fazendo (é preciso lembrar que Bane diz que as
pessoas podem fazer o que quiserem – ele não impõe sobre elas a sua própria
ordem).
É por isso que a crítica externa do filme (“sua retratação
do reino do OWS é uma caricatura ridícula”) não basta – a crítica tem de ser
imanente, tem de situar dentro do próprio filme uma multiplicidade de sinais
que aponte para o Evento autêntico. (Recordemos, por exemplo, que Bane não é
apenas um terrorista brutal, mas sim uma pessoa de profundo amor e sacrifício.)
Em suma, a ideologia pura não é possível, a autenticidade de Bane TEM de deixar
rastros na tecitura do filme. É por isso que o filme merece
uma leitura mais íntima: o Evento – a “república do povo de Gotham City”, a
ditadura do proletariado sobre Manhattan – é imanente ao
filme, é o seu centro ausente.
[1] Tyler O’Neil, “Dark Knight and Occupy Wall Street:
The Humble Rise”,Hillsdale
Natural Law Review, 21 de julho de 2012.
[3] Tyler O’Neil, cit.
[4] Christopher Nolan, entrevista na Entertainment 1216
(julho de 2012), p. 34.
[6] Karthick, cit.
[8] Karthick, cit.
[9] Citado em Jon Lee
Anderton, Che Guevara: A Revolutionary Life, New York: Grove 1997,
p. 636-637.
[10] Notemos a ironia do fato de que o filho de Neeson é um
xiita devoto, e que o próprio Neeson às vezes fala sobre a sua futura conversão
ao islamismo.
Publicado em: http://blogdaboitempo.com.br