AÍ PELAS PELAS TRÊS DA TARDE
"Nós
buscamos outras realidades porque não sabemos
como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos
pelo desejo de saber como é o nosso interior."
Montaigne
como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos
pelo desejo de saber como é o nosso interior."
Montaigne
Raduan Nassar |
Nesta
sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes
dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em ideias claras apesar
do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o
homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um
tanto excluído), largue tudo de repente sob olhares à sua volta, componha uma
cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais
escribas mais severos, dê um largo “ciao” ao trabalho do dia, assim como quem
se despede da vida, e surpreenda um pouco mais tarde, com sua presença em hora
tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que
você não sabia antes como era conduzida.
Convém
não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a
intensa expectativa que se instala.
Mas
não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das
meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se tirasse a importância das
coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pelo, mas sem ferir
o pudor (o seu pudor, bem entendido), e aceitando ao mesmo tempo, como boa
verdade provisória, toda mudança de comportamento.
Feito
um banhista incerto, assome depois com sua nudez no trampolim do patamar e
avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo,
o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances.
Desça,
sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos
pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da
escada.
Passe
por eles calado circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas
sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado), e se achegue depois,
com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no
terraço.
Largue-se
nela como quem se larga na vida, e vá fundo nesse mergulho: cerre as abas da
rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze
a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.
Adaptado em parágrafos por:
Adão Lima de Souza
Raduan é foda! "Lavoura Arcaica" é um livro excepcional, ainda mais para nós, que "discutimos" o direito.
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